Vários governos e muitos milhões de euros depois, Portugal continua à espera da decisão final para os problemas de congestionamento do aeroporto Humberto Delgado. De acordo com o presidente da TAP, a saturação do aeroporto impedirá a realização de 1500 voos da companhia no próximo Verão.

A incapacidade de resolver o problema de uma infraestrutura essencial para a região de Lisboa e para o país ilustra as fragilidades da governação do nosso país. Estas fragilidades reflectem-se na lentidão dos processos de decisão e, de caminho, põem em causa a competitividade da economia portuguesa, num mundo em acelerada mudança tecnológica e globalizado.

Tendo sido obtido o parecer positivo da Agência Portuguesa do Ambiente para a construção do aeroporto do Montijo, surgiu um último constrangimento. O parecer positivo da Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC), necessário para o projecto avançar, carece da aprovação dos municípios da área onde será implantado o aeroporto. Todavia, seis municípios, entre os quais o da Moita e o do Seixal, recusam dar parecer positivo. Os municípios alegam prejuízos para as populações em resultado da poluição sonora.

Ao freio imposto pelos municípios, o ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos respondeu com a intenção de uma alteração legislativa. O objectivo é dispensar o parecer dos municípios. O ministro justifica a alteração legislativa com o interesse superior do país, que não pode estar refém de um pequeno grupo de cidadãos. Não sei se este poder de restrição, concedido por lei aos municípios, faz ou não sentido. Mas sei que a forma como o ministro procura ultrapassar o impasse na construção do aeroporto do Montijo é uma subversão do processo democrático.

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Nos últimos anos, tivemos em Portugal vários exemplos de interferência na actividade executiva dos Governos. Durante os anos de emergência do Plano de Assistência Económica e Financeira, (PAEF) em 2013 e em 2014, o Tribunal Constitucional (TC) obrigou à reversão de propostas de cortes nos salários da função pública. Esta decisão do TC pôs em causa a capacidade de responder às exigências da troika. Apesar de tudo, o PAEF foi executado dentro do prazo. No caso do acórdão do TC de 2014, não foram sequer necessárias medidas orçamentais adicionais.

Ainda durante o período da troika, uma sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em Julho de 2013, impediu o encerramento da maternidade Alfredo da Costa. O Ministério da Saúde contestou a decisão, alegando que a deslocação dos serviços para o Hospital da Estefânia tinha sido “devidamente fundamentada do ponto de vista técnico, clínico, humano e também financeiro, perante a necessidade de garantir a melhor gestão dos recursos disponíveis e a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, em particular na área da Grande Lisboa e nos cuidados materno-infantis”. De facto, sabemos que existe em Lisboa um excesso de instalações hospitalares e que a sua fusão é uma condição necessária para termos mais eficiência e mais qualidade dos serviços de saúde. Esta é uma reforma que continua adiada.

Um exemplo recente de interferências na ação executiva do Governo foi a anulação pela Assembleia da República, no contexto da aprovação na especialidade do Orçamento do Estado para 2020, da chamada linha circular do Metro de Lisboa. Independentemente dos méritos técnicos da decisão, este é mais um exemplo de como um sistema de freios e contrapesos pode resultar em impasses na acção executiva dos governos.

Na verdade, estes vários exemplos de freios, previstos pela lei, fazem parte do normal funcionamento da democracia. Porém, servem, ao mesmo tempo, para ilustrar as dificuldades que podem causar na execução de um programa orçamental, na realização de reformas ou de investimentos.

A falta de capacidade para resolver problemas concretos das sociedades e das economias é hoje uma das causas do descontentamento das populações em relação aos seus governantes. O surgimento de tensões iliberais e de populismos são sintomas desse descontentamento. Assim, é urgente reflectir sobre o campo de acção dos diferentes poderes, de forma a tornar a acção governativa mais eficiente e eficaz.

Todavia, não me parece que sejam estes os problemas ou questões que inquietam o ministro Pedro Nuno Santos. A sua proposta de mudança da lei é apenas um expediente para ultrapassar falhas da governação. Neste caso, falhas na implementação de um projecto de investimento. Dada a importância do novo aeroporto, não deveria ser difícil conseguir o parecer favorável dos seis municípios em causa. Afinal de contas, esta solução governativa já conseguiu aprovar cinco orçamentos de Estado.

A proposta de alteração da lei pelo ministro Pedro Nuno Santos abre um caminho muito perigoso. Nos últimos anos, têm estado em voga posições autoritárias em países do Leste Europeu, como a Hungria ou a Polónia. Tribunais, bancos centrais ou os media têm visto o seu campo de acção restringido. Em sua defesa, os governos daqueles países invocam as dificuldades que estes poderes independentes causam à ‘boa’ governação.

Em Portugal, com a sua atávica grande centralização do poder, dificilmente se poderão atribuir os impasses na governação ao excesso de freios e de contrapesos. Ao invés, a sensação que muitas vezes temos é que são insuficientes.

Na questão do aeroporto do Montijo, como em muitos outros, trata-se mesmo de fraca governação. Não é um caso de ‘excesso’ de democracia.