O futuro ficou para trás no Teatro São Luiz quando Keyla Brasil, activista trans, travesti, «actriz, prostituta», invadiu o palco onde se levava à cena a adaptação de Tudo Sobre a Minha Mãe, e humilhou e responsabilizou um seu colega, o actor André Patrício, pelo seu desemprego e prostituição. Pior. Subalternizou-se o trabalho de André Patrício a um protesto e a uma agenda quando, logo no dia seguinte, o seu papel lhe foi retirado. Pior ainda. Menorizou-se uma actriz, Maria João Vaz, mulher transgénero, ao atribuir-lhe o papel retirado a André Patrício, por ela ser transgénero, não por ser actriz.

Regredimos culturalmente: só uma mulher trans poderá, de acordo com a nova cartilha, interpretar uma mulher trans. Limitámos a representação ao mundo conhecido: deixou, portanto, de ser representação para passar a ser apresentação. Pergunto: só uma mulher trans pode escrever sobre a mulher trans? Isso verte em todas as profissões relacionadas com a experiência transgénero, da psiquiatria à cirurgia?

Quero ser clara: repugna-me e condeno qualquer acto de violência e discriminação ou alienação de direitos do homem e da mulher transgénero. E defenderei sempre a luta política pela igualdade de direitos. Desta ou de outra minoria. Mas o que aconteceu é de outra natureza. A violência, a discriminação e a alienação de direitos recaíram, principalmente, sobre o actor André Patrício durante o exercício da sua profissão. Não por demérito seu como actor, não foi pateado, mas por ter nascido homem e se identificar como homem, ou seja, cisgénero na novilíngua, e interpretar o papel de uma mulher transgénero – para além de outros dois papéis.

O vídeo do acontecimento está disponível e aconselho-o. Nem que seja porque todas as categorias se confundem: lugar político e palco; activismo e arte e cultura; activistas e actores.

Os insultos de transfake que se vêm e ouvem são o paradoxo de toda esta chaladice.

Fake, em português falso ou fingido é, afinal, a chave da representação. Fingir. Fingir muito, ser tão mas tão falso e tão bem, que quem assiste acredita. No caso, acreditar que André Patrício, é Lola, uma mulher transgénero.

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Há milhares de exemplos no teatro, no cinema, em séries, deste agora inaceitável fake. Momentos de grandeza, de beleza estarrecedora. Os quais, e não por ironia, fizeram mais pelas causas que neles estão implícitas do que qualquer ofensiva e humilhante invasão de palco.

Em Brokeback Mountain, de Ang Lee, com o já falecido Heath Ledger e Jake Gyllenhaal, vê-se o amor e a paixão como amor e paixão, independentemente de ser hetero ou homossexual. De igual modo, vê-se o que é a homofobia através da memória de infância de Jack, o personagem de Jake Gyllenhaal, e da sua própria morte. Nenhum dos dois actores era homossexual. E aqueles que no filme espancam e deixam para morrer Jack decerto não são assassinos nem homofóbicos, não os foram buscar à cadeia. Hão-de ter, de certeza absoluta, carteira profissional de, pasme-se, actores.

De acordo com os cada vez mais segmentados critérios do politicamente correcto, a cada dia mais divisor e puritano nas suas instruções, o excelente Brokeback Mountain é um filme homofake. E nem sei o que possa ser dito de uma das minhas séries de eleição, Anjos na América, de Mike Nichols. Afinal, a pretexto do HIV e da sida, e de como foram vividos nos anos 80 politica, religiosa e socialmente, expõe a dor, a solidão, a perda.

Na série, os actores multiplicam papéis. Prior, doente terminal, é na realidade um actor saúdavel. A actriz Meryl Streep, além de ser um dos anjos, interpreta, entre outros, um homem velho e judeu, o rabi Chemelwtiz, num fingimento tal, numa tão completa falsidade que é irreconhecível. Temos, assim, um homem saudável a representar um doente. Uma mulher cisgénero a fazer de anjo, uma criatura assexuada, dizem. E de rabi. Ora, Meryl não é judia. Pode interpretar um homem pertencente uma minoria sujeita a perseguição histórica e genocídio? E para mais, velho, sendo que na altura a actriz estava distante dos critérios geriátricos. Mil vezes fake. É caso para gritar «desce daí, respeita esse palco»?

Ou é caso para perguntar: uma mulher transgénero não pode fazer de homem judeu e velho? Não pode interpretar uma mulher heterossexual? Um anjo? Um doente terminal? A ser desta forma, isto é, de acordo com os critérios de Keyla Brasil, terá uma vida profissional muito limitada. Ou então entramos directamente na mirabolante lógica woke: os opressores/maioritários/apropriadores não podem interpretar trans nem isto nem aquilo, mas os oprimidos/minoritários/apropriados podem interpretar todo e qualquer papel.

O palco do São Luiz foi invadido pelo activismo tóxico. Quem desrespeitou quem, de facto? André Patrício não desrespeitou ninguém. Mas foi desrespeitado por quem lhe exigiu respeito. Maria João Vaz também foi desrespeitada.

Este é o mesmo activismo trans cuja toxicidade tem por alvo, em regra, as mulheres agora ditas cisgénero heterossexuais ou lésbicas sexualmente atraídas por outras mulheres cisgénero. Desta vez a toxicidade transbordou e levou de caminho um homem cisgénero.

Há outro activismo trans, não tóxico. É o que tem lugar no palco político.

Em cena, no teatro, está, ou deve estar, o talento, esse mistério onde se fundem as competências técnicas, a vocação e a chama.

No primeiro texto que escrevi para este jornal, falei sobre o caso da tradução do poema de Amanda Gorman, a jovem poeta, modelo e activista que se tornou global na tomada de posse de Joe Biden, ao dizer o seu The Hill We Climb. E de como nos Países Baixos, e depois um pouco por todo lado, se levantou a estapafúrdia questão de que a tradução daquele texto deveria ser feita por uma mulher negra – tradutores de trabalho provado, Booker Prize incluído, viram interrompido o seu trabalho. Porque não exigir também que os tradutores fossem modelos e activistas e de 20 anos?

Sou poeta e tenho poesia traduzida. Não quero saber nem a cor, nem o género, nem com quem dorme, nem em quem vota quem me traduz: desejo apenas um bom tradutor. E um bom filme. Uma boa série. Um bom actor em palco. O que cabe num mundo diverso e plural. E um mundo diverso e plural que não ceda ao activismo tóxico.

O São Luiz cedeu. Fez mal.

A autora escreve segundo a antiga ortografia