Uma velha amiga que vive há décadas em Bruxelas, e que por estes dias anda por África a inspeccionar a vida secreta de crocodilos e girafas, escreveu-me terça-feira, referindo-se aos terroristas islâmicos como “esses… (não sei como descrevê-los)”. Por acaso, é uma hesitação muito sensível. Também eu, e cada vez mais, à medida que a frequência dos atentados aumenta, me pergunto como os designar. Como falar daquela gente? Aparentemente, é um problema com que não se defrontam normalmente os especialistas destas coisas que as comentam na televisão, na rádio e na imprensa escrita. Mas há um excesso de civilidade em os tratar banalmente por “terroristas islâmicos” ou até usando formas mais suaves e técnicas. Não é que eu tenha uma especial apetência pelo insulto – e, de resto, aquela gente, dado o seu excesso criminoso, põe-se fora da possibilidade de ser insultada: tudo parece pouco. É que, do ponto de vista descritivo, a coisa falha.

Há quem lhes chame “islamo-fascistas”. Há dois defeitos nesta designação. O primeiro é ser um insulto. E, pela razão que acabei de mencionar, o insulto fatalmente falhar. Pode aliviar por um instante, mas cai no vazio. A segunda razão, mais teórica, é que descritivamente não captura nada. Já Deus sabe quanto é difícil definir rigorosamente o fascismo europeu de outras eras – e agora utilizar “fascismo” para denominar aquela gente… Por mim, descarto o “islamo-fascistas”.

Também há quem utilize, nos casos em que a acção aparentemente se presta a isso, e aparentemente presta-se muitas vezes, a expressão “bombistas suicidas”. Aí, o erro é colossal. Se são suicidas, são-no por acidente. A essência da prática está em matar os outros. E se acreditam que vão para um paraíso qualquer encontrar setenta e duas virgens é justamente por acreditarem que essa é a recompensa por terem morto infiéis, como o Corão veementemente aconselha. Seriam suicidas, contando com a dignidade própria ao suicídio, se se fizessem, por uma razão ou outra. explodir sozinhos em casa. Tratando-se de quem se trata, eu, pessoalmente, não levaria nada a mal, embora desaconselhasse grandes expectativas quanto às setenta e duas virgens: na eternidade, é um número perfeitamente irrisório, ao alcance de qualquer menino de coro.

Resta uma terceira hipótese, que recolhe o meu favor: canibais islamistas. Há, naturalmente, várias objecções. Penso imediatamente em duas. A primeira é que “canibalismo” é aqui metafórico. A segunda é que é uma injustiça feita às tribos que praticam a antropofagia por razões rituais ou simplesmente (é a tese de um antropólogo especulativo) para obterem proteínas. A segunda objecção é irrespondível, admito. Não se podem fazer omeletes sem partir ovos, como dizia o outro. Em contrapartida, a metáfora é defensável. O que os vulgarmente designados terroristas islâmicos fazem possui uma forte analogia com o canibalismo. Em ambos os casos, trata-se de uma prática de sociedades que se definem pela guerra endémica (no caso presente, a guerra aos infiéis) e onde o estatuto social se define pelo número de inimigos mortos.

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Mas a analogia funciona igualmente num plano mais profundo. Em ambos os casos, trata-se de devorar uma sociedade inimiga. Muito efectivamente, na figura de um seu representante, no caso dos rituais antropofágicos de várias tribos, ou simbolicamente, por meio dos assassinatos em massa, no que diz respeito aos canibais islamistas. É o nosso corpo social, como um todo, que os canibais islamistas querem devorar, na ilusão de uma grandeza a vir não menos improvável do que a força que os antropófagos pretendem receber do corpo do inimigo devorado.

Já agora, dá vontade de continuar e de nos interrogarmos acerca da designação que convém àqueles que, nas nossas sociedades, tendem a justificar, de um modo ou outro, os actos dos islamistas canibais. O nome vem facilmente ao espírito: voluntários comestíveis. O género dos voluntários comestíveis divide-se em duas espécies: os voluntários comestíveis teóricos e os voluntários comestíveis por simples ecumenismo. Determinar as características próprias a cada uma das espécies é fácil. Basta, para não ir mais longe, pensar nas reacções aos últimos atentados de Paris. Elas repetiram-se por relação a Bruxelas.

Os voluntários comestíveis teóricos (eles encontram-se sobretudo no PC e no Bloco de Esquerda, sem esquecer o camarada Arnaldo Matos, que certamente não merece nunca ser esquecido) alicerçam a sua compreensão dos gestos dos canibais islamistas numa teoria da sociedade e da história. Para falar rápido, são as nossas sociedades que são responsáveis pelo advento dos canibais islamistas, e estavam a pedi-las (como os Estados Unidos no 11 de Setembro). Há graus variáveis de subtileza neste tipo de argumentação, embora desgraçadamente não se peque nunca por excesso. Somando tudo, a posição do deputado do PCP, Miguel Tiago, que estabelece uma relação causal entre os atentados de Bruxelas e as “políticas de direita” (os primeiros seriam efeito das segundas), resume bem a tese geral.

A argumentação dos voluntários comestíveis por simples ecumenismo (que vivem, de acordo com a sua vocação, tanto à esquerda como à direita) é, em parte, diferente. Para começar, há a referência à religião, que falta quase por inteiro nos voluntários comestíveis teóricos. O Islão, por ser uma religião, não pode conter elementos de violência. Não? Um exemplo, entre muitos: “Os judeus disseram: «Ozair é filho de Alá». Os Cristãos disseram: «O Messias é filho de Alá». Eles imitam o dizer daqueles que foram infiéis anteriormente. Que Alá os mate!” (Surata IX, 30).

Quer isto dizer que não há piedade no Corão? Não: há piedade no Corão. Quer isto dizer que não há uma percentagem que ninguém sabe como contabilizar, e que eu espero, embora com algum cepticismo, que seja imensa, de muçulmanos que se encontram entre os seres mais pacatos do planeta e a quem não passa pela cabeça interpretar literalmente a passagem que citei do Corão (e inumeráveis outras não menos violentas contra cristãos e judeus), quanto mais passar à prática? Claro que não quer dizer isso. Mas quer certamente dizer que é falar com doses astronómicas de ignorância – e de indiferença para com a sua própria ignorância: bullshit, como se diz -, pretender que o Islão é uma pura religião da paz. Será muita coisa, mas isso não é. E, creio que já escrevi isto aqui (como evitar repetições quando os mesmos acontecimentos se repetem, apenas com variações de tempo e de lugar?), que não se venha com a história do Bezerro de Ouro do Antigo Testamento. Há, hoje em dia, cristãos e judeus, vítimas potenciais e efectivas: não há, que se saiba, sectários do Bezerro de Ouro.

Os voluntários comestíveis por simples ecumenismo também não alicerçam, ao contrário dos outros, as suas tentativas de compreensão numa visão explícita da sociedade e da história. A sua atitude é mais como a daquele daquele aprendiz sociólogo que, vendo um velhote a ser agredido por um jovem no passeio do outro lado, atravessa a correr a rua, não para ajudar o velhote mas para perguntar ao jovem quais as condições sociais que o tornaram vítima daquela propensão à violência. Reflexos deste tipo não estiveram, é pena, ausentes daquilo que António Costa disse, a quente, depois do atentado de Bruxelas: desenvolver, junto das comunidades, os valores da tolerância, melhorar a localização urbana em que vivem, fomentar uma maior inserção social, promover o diálogo intercultural, etc. Tudo muito lindo, mas os islamistas canibais não se combatem com doces apelos à compreensão. Por uma razão simples: eles não compreendem a compreensão.

Em Agosto de 1551, o padre jesuíta João de Azpilcueta Navarro escreveu de Salvador uma carta aos irmãos da Companhia de Jesus de Coimbra. Nela contava que em Porto Seguro se encarregou de “ensinar aos meninos a doutrina”, dizendo que “eles agora aprendem tão bem que é de folgar de ver e dar graças ao Senhor”. Única razão de verdadeiro lamento: o “este mal de comerem-se uns aos outros” andar “mui danado entre eles”. Hoje anda também um “mal danado” entre os islamistas canibais. A diferença é que não são “meninos”, ao contrário do que pensam os comestíveis voluntários por simples ecumenismo, não sem um certo racismo sublimado, nem se comem uns aos outros. O objecto somos nós.