É o tema do momento. É um tema de sempre. Os conflitos prolongados são uma corrida para ver quem primeiro esgota os seus recursos. Sem munições, sem combustível, sem comida, sem soldo não há forças combatentes eficazes e motivadas. Tudo isso custa dinheiro, muito dinheiro. O tema de quem lucra com a guerra é também um clássico. Tem sido usado por cá pela propaganda russa para tentar dividir o Ocidente. Mas comecemos pelo dinheiro de todos nós, e pela discussão sobre o novo Orçamento de Estado.
Um orçamento de guerra?
Teremos em 2023 um orçamento de guerra? Essa não parece ser uma pergunta que importe a muita gente. Temo que muitos portugueses ainda não queiram acreditar que vivemos numa Europa em guerra, que enfrentamos um desafio como não víamos desde 1939 aos pilares do edifício de segurança europeia, onde se tem abrigado a nossa paz e prosperidade. Na proposta de orçamento apresentada estima-se que o investimento público em defesa aumente cerca de 8%, passando de 2,38 para 2,58 mil milhões de euros. É bom que seja mais do que nos últimos anos. É bom que se tenha reforçado a verba para missões no exterior. E, sobretudo, que seja incluída uma norma que consagra o princípio de que haverá dinheiro para novos empenhamentos no quadro da NATO. Mas não faria mais sentido reforçar já o orçamento em 10 ou 15 milhões de euros para contemplar essa provável eventualidade? É bom que se tenha aumentado, na linha do previsto, a dotação para a lei de programação militar em 20 milhões de euros. Mas é fundamental que a revisão desta lei, prevista para 2023, seja ambiciosa e corresponda a um reforço substancial.
O Presidente da República tem apelado insistentemente a este reforço de investimento na defesa. É fundamental que a Oposição e a opinião também se manifestem, também se interessem. Tendo em conta as lições da guerra da Ucrânia, temos tudo o que precisamos? Não me parece difícil apontar áreas onde um reforço de investimento é necessário, algumas até poderão estar contempladas neste aumento, outras claramente não estão. Devíamos reforçar as reservas de munições e as nossas capacidades ao nível de artilharia motorizada. Devíamos reforçar reservas de sistemas antitanque e antiaéreos portáteis, como os Stinger ou Javelin. Devíamos investir num sistema de defesa antiaéreo avançado. Devíamos ter sistemas móveis de mísseis antinavio de defesa costeira. Devíamos ter sistemas de drones armados. Tudo isso custa dinheiro. É legítimo dizer que não queremos gastar esse dinheiro, como país. Não podemos é, depois, estranhar que não haja certo equipamento militar para nós ou para oferecer à Ucrânia. Percebo que o orçamento é um exercício de equilíbrio entre prioridades. Não se deve esquecer o resto e olhar apenas para a Defesa, mas a Defesa não é um luxo, sobretudo, num Mundo cada vez mais perigoso. Graças à NATO, beneficiamos da melhor garantia de segurança do Mundo, inclusive contra a chantagem nuclear russa. Mas se não quisermos perder o indispensável compromisso dos norte-americanos com a Aliança, temos de mostrar que do lado da Europa estamos também dispostos a contribuir realmente para a nossa defesa coletiva. Não tem de se resolver tudo num ano, mas recordo que a vizinha Espanha anunciou que vai aumentar a despesa em defesa em 26% no orçamento para 2023.
Quem lucra realmente com esta guerra?
A propaganda de Putin aponta o dedo aos EUA como estando a lucrar com esta guerra, em particular no campo da energia. Do lado de cá também há quem ache que é um sinal de superioridade intelectual e rigor analítico fazer eco desta narrativa. Vimos uma explosão deste tipo de teses a respeito da sabotagem do Nord Stream. Não existem dados públicos para afirmar com certeza quem o fez, mas também não vi qualquer prova ou argumento forte que justifique a tese de terem sido os EUA. Parece-me bem mais suspeita a Rússia, que mostra não respeitar quaisquer limites legais no uso da força, e que procuraria, assim, inflacionar o preço do gás e reforçar a perceção de risco relativamente ao novo gasoduto que liga a Noruega à Polónia e outras infraestruturas críticas europeias. Sabemos que Moscovo procura agravar a crise económica europeia para aumentar a pressão para o fim das sanções, e tem outros gasodutos por onde poderia voltar a fornecer gás à Europa.
Na passada semana ficámos efetivamente a saber quem está publicamente disposto a lucrar com esta guerra. Falo do cartel dos produtores de petróleo liderados pela Arábia Saudita na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), cada vez mais aliada com a Rússia na chamada OPEP+. O atual responsável máximo da OPEP veio tentar defender o aumento do preço com o argumento de que estes pobres países exportadores de petróleo precisam de mais dinheiro para investir mais na produção de energia!
Independente disto, os EUA beneficiam ou não economicamente com a guerra? Os EUA estão a sofrer com um aumento da inflação e outros efeitos negativos do conflito na economia global. Perdem é economicamente menos do que a Europa, sobretudo a Europa Central e de Leste. E isto por duas razões fundamentais que nada têm a ver com uma conspiração norte-americana. A primeira é que muitos países europeus, em particular a Alemanha, fizeram uma aposta errada numa excessiva dependência do gás russo, apesar de frequentes avisos de Washington. A segunda é que os EUA investem e arriscam muito mais na extração de recursos naturais, nomeadamente com o fracking, que é praticamente um tabu na Europa. É verdade que, como resultado desta situação, a Europa precisa de diversificar fornecedores e os EUA aceitaram aumentar a exportação de energia para cá numa evidente convergência de interesses. Estranhamente estas análises “rigorosas” esquecem que os EUA é de longe o país que mais ajudou a Ucrânia – já são mais de 17 mil milhões de dólares.
Na verdade, os EUA beneficiaram muito mais com a Segunda Guerra Mundial, da qual saíram como a principal potência económica, com metade da produção industrial e mais de um quarto do PIB global. Os EUA foram a única grande potência cujo território e produção não foi praticamente atingido pelo conflito. Foi, aliás, isso que permitiu ao país ser o arsenal da democracia, alimentando a máquina de guerra dos demais aliados, inclusive da União Soviética.
Não tenho problemas em ser crítico dos EUA, antes ou durante este conflito. Não descarto que o crescente nacionalismo económico que se manifesta também do outro lado do Atlântico leve a medidas protecionistas de gestão desta crise. Se assim for, não deixarei de as criticar. É claro que é legítimo tentar perceber as implicações económicas duma guerra. Mas a ideia de que devemos por razões económicas apoiar ou ser neutros face à agressão russa merece-me tanto respeito intelectual e moral como o argumento de que não se devia ter combatido Hitler porque os EUA é que lucraram economicamente com o conflito. Para mim a defesa da paz e da liberdade na Europa não está à venda, espero bem que a maioria dos europeus concorde. Mas o inverno está a chegar e uma guerra prolongada é sempre uma prova de resistência, material e moral.