A pandemia covid-19 colocou os líderes políticos perante novos dilemas. O combate à epidemia, para proteger a saúde das pessoas, tem de ser feito à custa da redução da actividade económica. Por outro lado, a redução da actividade económica vai fragilizar os países, as suas contas públicas e pode colocar em causa a satisfação das necessidades básicas da população (por exemplo, alimentação ou medicamentos). Se não for possível restabelecer a actividade económica a breve trecho, devido à quarentena ou ao tratamento dos trabalhadores, podemos ter todo um mundo novo de questões económicas pela frente. Vamos precisar de muita imaginação para anteciparmos os problemas que vamos ter pela frente e as possíveis soluções. As falhas de imaginação têm estado na origem de muitas catástrofes.

Em Janeiro de 1967, numa simulação em Terra para a primeira viagem tripulada à Lua, três astronautas perderam a vida. Este desastre foi investigado por uma comissão de inquérito, que pôs em causa o projecto de John F. Kennedy de pôr o homem na Lua. Interrogado por um membro daquela comissão sobre as causas do desastre, o astronauta Frank Borman respondeu que se deveu a uma ‘falha de imaginação’. Os participantes no projecto receavam que um desastre pudesse vir a ocorrer no espaço e descuraram os riscos de uma simulação em Terra – o oxigénio gerou a combustão que incinerou os astronautas. A utilização do termo ‘falha de imaginação’ no caso do desastre da missão Apollo 1 não é o mais adequado. O desastre deveu-se a uma falha no desenho da simulação – o ambiente em que a missão iria decorrer era diferente do ambiente lunar. Ou seja, neste caso, existia toda a informação necessária para impedir o incêndio.

Em todas as catástrofes – vejam-se os terríveis incêndios de 2017 em Portugal –, surge a questão: poderíamos tê-las antecipado e tomado medidas para mitigar as suas consequências? Também na pandemia covid-19 se tem levantado esta questão. Os governos poderiam ter feito mais e sido mais rápidos na sua actuação?

Os que criticam a actuação dos governos referem muitas vezes a conferência Ted de Bill Gates em 2015: “O próximo surto? Não estamos prontos.” Na sua intervenção, Bill Gates alerta-nos para os riscos de uma pandemia e diz-nos que essa será nos próximos anos a causa de milhões de mortes. O fundador da Microsoft diz-nos também que nos devemos preparar como nos preparamos para a guerra, dando o exemplo das forças de intervenção rápida da NATO. E para investirmos na ciência.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O novo coronavírus surgiu na China em Dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, na região de Hubei. Há dois meses, no dia 23 de Janeiro, foi declarada a quarentena em toda aquela região e foram impostas fortes restrições à circulação de pessoas. Os efeitos económicos daquelas medidas sanitárias – então vistas no Ocidente como draconianas – fizeram-se sentir nas cadeias de produção globais: fábricas de automóveis e telemóveis tiveram de encerrar em vários países. Que o regime autoritário chinês tenha tomado medidas com efeitos tão gravosos para a sua economia – algumas estimativas apontam para quebras de 20% na produção industrial nos dois primeiros meses do ano – deveria ter feito soar os alarmes no Ocidente. No entanto, até Fevereiro, a covid-19 continuava a ser desvalorizada na Europa e nos Estados Unidos e a ser comparada a uma gripe, nomeadamente em termos de taxa de letalidade. De facto, os números da China que conhecemos, actualizados à data de hoje – infectados (81 171), mortos (3 277) e recuperados (73 159) –, tornavam a comparação com uma gripe verosímil. Era difícil imaginar o que viria a acontecer em Itália.

No dia 22 de Fevereiro, surgiriam os primeiros casos de contaminação no Norte de Itália, levando ao isolamento de várias localidades. A rápida propagação da covid-19 levou a que, no dia 7 de Março, fosse decretada a quarentena no Norte de Itália, numa área onde residem cerca de 16 milhões de pessoas. A 13 de Março a quarentena alargou-se a todo o país. As notícias e os números de Itália, tornaram clara a gravidade e letalidade da doença: infectados (63 927), mortos (6 077) e curados (7 432), dados de ontem. A experiência em Espanha, e o decreto de quarentena na França, Alemanha, Reino Unido e em quase todo o mundo obrigou-nos a enfrentar a realidade do cisne negro que se abateu sobre todos nós.

A rapidez com que o novo coronavírus se propagou a todo o globo e o desconhecimento da sua natureza tornaram muito difícil uma resposta rápida e eficaz. No caso de uma doença altamente contagiosa, com mortalidade elevada na população idosa, para a qual não há vacina nem tratamento, restam poucas alternativas à quarentena. Talvez pudessem ter sido ganhos alguns dias na compra de ventiladores, equipamentos de protecção individual e outro material médico. Mas não era possível ter esse material em armazém. Nem ter sistemas de saúde dimensionados para responder a um surto pandémico, dado que as necessidades irão sempre depender das suas características (por exemplo, os ventiladores não seriam relevantes no caso do Ébola).

No combate à covid-19, precisamos de imaginação para responder rapidamente às necessidades dos hospitais, médicos, enfermeiros e outro pessoal: comprar equipamentos e material a outros países e mobilizar empresas, universidades e centros tecnológicos para suprirem as necessidades existentes. Um dos objectivos da quarentena é dar-nos tempo para essa adaptação.

Na frente económica é também necessária muita imaginação, porque lidamos com uma crise nova, que a humanidade e as economias globalizadas nunca viveram. Esta crise é simultaneamente uma crise de produção, por escassez de mão-de-obra, e é uma crise de procura, porque o consumo diminuiu porque as pessoas estão retidas em casa e as empresas, num ambiente de grande incerteza, não investem. E é uma crise que assola em simultâneo todas as principais economias mundiais.

Esta crise, radicalmente nova, obriga-nos a fazer perguntas sobre o que poderá acontecer e como a poderemos ultrapassar.

Dada a forma aleatória como o vírus afecta os trabalhadores e as empresas, as cadeias de produção e distribuição permanecerão intactas? Com as fronteiras fechadas na Europa, os bens continuarão a fluir e a satisfazer as necessidades essenciais das populações? No caso de escassez de bens, os países europeus privilegiarão os seus cidadãos? Se isso acontecer, haverá retaliações dos outros Estados-membros? Os países poderão reafectar trabalhadores de atividades não essenciais para atividades essenciais? Será possível garantir a triagem dos trabalhadores com as condições sanitárias necessárias para manter empresas em funcionamento? O uso de dados em tempo real será útil para antecipar falhas na produção e distribuição?

Depois da pandemia estar controlada, terão os países condições para aplicar as necessárias medidas de estímulo orçamental e de monetário? Ou terão já gasto todas as munições? Isso implicará uma recuperação mais lenta? Se sim, como poderá ser paga a dívida entretanto contraída? As democracias, em particular as da União Europeia, vão ter a capacidade de organização e coordenação necessárias para combater a pandemia e manter as economias em funcionamento?

Podemos não vir a necessitar de uma resposta a estas questões. Quem sabe se um raio ultra-violeta eliminará o novo coronavírus por altura da Páscoa. Mas é muito provável que isso não aconteça. Devemos por isso preparar-nos para o pior cenário possível. Com esse objectivo, um grupo de economistas, em que me incluo, apresentou propostas para prevenir o eventual colapso nas cadeias de produção e de distribuição. São precisas mais propostas. Se não se vierem a revelar necessárias tanto melhor. Mas se correr mal que não seja por falta de imaginação.