Alguns passos atrás dos pais e da irmã, o adolescente arrasta os pés. Dinamarqueses? Americanos? Aproximando-se da família por sua espontânea vontade, dá um leve calduço entediado na irmã mais nova, que caminha de mão dada com o pai, levantando-lhe o cabelo louro de raspão, e avança para alcançar a mãe, abraçando-a pelas costas. Param diante da montra de uma sapataria da rua Augusta. O rapaz aponta indolentemente para um par de chinelos; o pai repara que em Lisboa é tudo mais barato. A montra interrompe o aborrecimento do rapaz, que regressará a casa com uma opinião formada sobre a beleza das raparigas e das mulheres da cidade, embora não chegue a trocar palavra com nenhuma. Não comentará as suas conclusões com ninguém.

À noite, ao saírem do hostel para jantar, ter-se-á perfumado e composto o cabelo diante do espelho. Arrastar-se-á por Alfama, sempre alguns passos atrás do rebanho, trocando olhares furtivos com raparigas enquanto estas comem sardinhas na outra ponta de um arraial de esquina. Deplorando a ausência de wireless na casa de fados para que o conduziram, quase se sente adormecer — não fosse pela sobrinha do proprietário, que a certa altura aparece da copa.

O regresso às aulas, o círculo de amizades, as tardes trancado no quarto, estão por semanas a anos-luz, ocasionando uma nova forma de solidão e de projecção do futuro: crónicas de um subúrbio norte-europeu originadas despercebidamente enquanto se deambulava no Museu dos Coches, ou se furava o trânsito num tuk-tuk, que permanecerão, todavia, secretas por muito tempo, até serem esquecidas, e um dia lembradas, e outra vez esquecidas.

Talvez a subtracção do rapaz à família tenha começado muitos anos antes, numa das suas primeiras gripes, durante uma “preguiçosa e luxuosa convalescença… meio bêbedo de chá e limonada quente”, como escreveu Szarkowski acerca de um têxtil batido pela luz numa fotografia de Laughlin; não podendo ir à escola nesse dia, talvez tenha encetado ao presenciar sem que ninguém desse por isso uma caprichosa coreografia de sombras da rua através das cortinas de casa, um primeiro teatro da vida. A absorção dessa criança pasmada ressurge-nos no trânsito, pela Marginal, no esgar extrovertido de uma menina no banco de trás de um carro à nossa frente, pondo-nos a língua de fora, sem que a mãe dê por isso.

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Muitas vezes nos esquecemos, ao crescer, da magia dos jogos de sombras das cortinas e das janelas, continua Szarkowski, “habitada por espíritos que perseguem as suas mutações, sombras líquidas” que nos contam segredos. As férias passadas com os pais durante a adolescência e as nossas primeiras convalescenças são temporadas fundadoras: sendo contrariedades, são intervalos ao curso livre daquilo que nos satisfaria nessa idade.

Mas, apenas vista na perspectiva do presente, a contrariedade aparece como um incentivo à solidão: os primeiros momentos, acentuados pela contingência, de uma entrega a si, acarinhados e sustidos por quem cuida de nós, e a quem em breve abandonaremos. O rapaz em férias não guardará uma memória clara de Lisboa, a que achará, provavelmente, uma seca. Não é, contudo, menos provável que a subjectividade tenha principiado enquanto cada um de nós apanhava uma seca, importunados e, ao mesmo tempo, resgatados pela novidade de uma inquietude sexual, sem nos sabermos observados por quem nos passava ao lado. Lisboa pode bem ser, para muitos dos que nos visitam, o início ignorado da sua vida adulta: o começo de um adoecimento sem retorno.

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de Esse Cabelo (Teorema, 2015).