Como decorre das 27 alíneas de competências que lhe são reconhecidas pela Constituição, o Presidente da República dispõe de dois vetos: o político e o constitucional. Na atual conjuntura, quando o familygate atingiu proporções assustadoras, Marcelo Rebelo de Sousa inventou um terceiro veto: o veto moral ou ético.

Na realidade, quando Marcelo redigiu pela própria mão um diploma proibindo a Presidência da República de nomear qualquer familiar do Chefe do Estado, independentemente do grau de parentesco, para as Casas Civil e Militar, ou para qualquer organismo dependente do Palácio de Belém, estava a proceder a um veto moral a António Costa. Dito de outra forma: com esta decisão o Presidente da República quis mostrar que considerava demasiado curta a proposta apresentada pelo Partido Socialista sobre o assunto.

Como é sabido, o PS demorou a reparar que não tinha um elefante na sala, mas sim uma manada – salvo seja – a deambular por quase tudo o que fosse gabinete. Só que essa demora foi célere na penalização do partido. As sondagens encarregaram-se de mostrar a onda de desaprovação social que se abateu sobre o Governo devido ao familygate. Num ápice, António Costa viu esfumar-se o efeito de medidas como a redução do preço dos passes para os transportes públicos. A vitória eleitoral, até então tida como garantida, passou a estar em risco.

Face a esta alteração de cenário, o Partido Socialista resolveu apresentar uma proposta para proibir as nomeações diretas de familiares no Parlamento, autarquias e Administração Pública. Como os laços familiares iam até aos primos, parecia que a moralização da vida política ficaria assegurada. Só que Marcelo, um constitucionalista respeitado na Academia, sabe que, embora o espírito da lei conte mais do que a letra da mesma, a letra não deixa de ser importante.

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Ora, a proposta do PS apenas proíbe as nomeações diretas e, como tal, abre espaço para as nomeações indiretas ou cruzadas. Uma prática a fazer lembrar a situação que ocorre quando os engenheiros de uma autarquia não podem assinar projetos particulares para a autarquia onde exercem a profissão, mas não estão impedidos de o fazer para as autarquias vizinhas. Uma possibilidade que abre campo para situações pouco recomendáveis.

Voltando à proposta socialista, o facto de essas eventuais – ou nem por isso, atendendo ao histórico acumulado – nomeações cruzadas terem de ser divulgadas publicamente pode arrefecer o ímpeto do familygate, mas não será suficiente para erradicar uma prática que os cidadãos consideram pouco ou nada democrática. Foi esse sentimento coletivo que levou Marcelo Rebelo de Sousa a inventar o veto moral. Algo a fazer lembrar a mulher de César. Obviamente, o imperador romano.

Num tempo em que a foice da vida já se encarregou de ceifar as maiores referências do Partido Socialista, talvez convenha lembrar que uma dessas referências ao referir-se a um dos poucos senadores portugueses ainda vivos disse, grosso modo, que professor é sempre mestre, mesmo quando não concordamos com ele.

Como não parece aconselhável que o país caminhe a velocidades éticas diferentes, a reação a este veto moral permitirá aos portugueses aquilatarem do grau de respeito de António Costa pelo espírito das maiores referências socialistas.

Professor de Ciência Política