Uma das características mais irritantes dos portugueses é a benevolência com que toleram abusos aos indivíduos e intromissões excessivas, sobretudo quando tais aleivosias vêm de instâncias revestidas de autoridade. Nos últimos tempos tivemos vários exemplos, díspares nos assuntos e nos graus, mas todos sintomas do mesmo.

Uma escola que presume poder imiscuir-se na sexualidade de crianças (e que só levantou celeuma pela possibilidade apresentada de homossexualidade; não fora isso e toda a gente passaria ao lado). Fotografias de criminosos meio despidos e acorrentados divulgados publicamente, seguidas de imagens de idosos esmurrados a fingir que eram as vítimas dos primeiros. Uma maré de gente considerou normal esta exposição e violentação de pessoas que consideravam ter sido vítimas dos criminosos fugitivos, o que choca ainda mais que as imagens dos prisioneiros.

(Atenção, não quero criticar excessivamente os polícias pelas imagens, nem diabolizar. Presumo que tenha sido um disparate de alguém excessivamente zeloso – e que merecerá repreensão, claro – para mostrar que haviam conseguido resolver a ridícula fuga. Já o comportamento dos sindicatos foi miserável. Mas discordar de sindicatos é uma característica constante em mim de que me orgulho.)

Porém não é da complacência com estes abusos que hoje escrevo. Prefiro trazer outra intromissão brutal, insidiosa, que afetará a todos – e a que ninguém ligará e a maioria até aderirá alegre e saltitante.

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Comecemos por um bocadinho de contexto. Há uns anos, o alegadamente liberal governo da coligação PSD-CDS criou o sistema e-fatura, que obriga à emissão de uma fatura a cada transação, cuja informação é posteriormente transferida para a Autoridade Tributária. Para convencerem os incautos contribuintes a fornecerem o número de contribuinte em cada fatura, inventaram uns sorteios com carros, e mais tarde a possibilidade de descontar na coleta do IRS parte do IVA destas faturas se se deu número de contribuinte.

Por cá, óbvio, os inocentes cordeirinhos aderiram em massa a esta mania de fornecer o número de contribuinte quer à empresa vendedora ou prestadora de serviços quer às finanças, tudo para poder descontar um máximo de 250 € no IRS. Aparentemente vivemos num país de gente que gosta de ser vasculhada e não se incomoda de dar à AT a informação de onde almoça, em que supermercado compra o leite e as bolachas para o lanche da filharada, em que locais passa o fim de semana, com que regularidade vai ao cabeleireiro e um extenso etc.

As Finanças, ardilosas, trataram de aproveitar o melhor que souberam esta oportunidade. Não fora a Comissão Nacional de Proteção de Dados ordenar a destruição de grande parte dos dados armazenados pela AT, esta simpática organização teria compilado todas as informações que constassem das faturas, incluindo os bens e serviços adquiridos, ficando a saber se pintamos o cabelo, e com que tinta, se fazemos manicura, se compramos produtos biológicos ou se oferecemos alimentos açucarados aos miúdos, se preferimos vinho do Douro ou do Alentejo quando jantamos fora e por aí adiante.

Ninguém se incomodou que a AT, departamento estatal, dispusesse de tanta informação sobre estas queridas cobaias fiscais voluntárias. Ainda bem. Porque o governo, agora PS apoiado por BE e PCP (mostrando como esmifrar e vigiar o contribuinte é propósito de todos os partidos políticos), pretende implementar aquilo que a CNPD repudiou e continua a repudiar.

A ideia é ter a fatura permanentemente armazenada na AT, em vez de em papel com o contribuinte. Claro que se vão socorrer das partes bondosas da proposta: não há mais fatura em papel (o consumidor não só não a perde como é ambientalmente mais racional) e deixa de existir necessidade de fornecer à empresa emitente da fatura o número de contribuinte. Em contrapartida, o Estado vai ficar a saber todos os bens e serviços de todas as faturas que forem assim emitidas (e não só as que permitem dedução à coleta de IRS). E, não tenho dúvidas, às tantas lá começará a verificar se os consumos se adequam aos rendimentos declarados, às prestações sociais pedidas, se se alimentar com défice de frutas e legumes talvez mereça que se lhe aumente a taxa moderadora no SNS. As possibilidades são infinitas.

Claro que este tipo de faturas será voluntário (se os deuses não estiverem loucos), mas as minhas expetativas são de ver as celestiais ovelhinhas a aderirem angelicalmente felizes. Para mim claro que vai continuar fora de questão dar a conhecer à AT que consumos eu faço e onde, que serviços adquiro, que locais frequento. Tenho mesmo calafrios só de contemplar tal perspetiva. Prefiro que as lojas mantenham, se eu assim quiser, os meus dados, que ter a AT sabendo se gosto de dim sum ou de cozido à portuguesa.

Nem refiro os custos de novos programas e equipamentos informáticos para as empresas. Presumo que o Ministério das Finanças suponha que a tesouraria das PME é tão desafogada como a das empresas que têm amigos na administração da CGD, ou na tutela do banco, e lá se financiam.

Porém sei que a generalidade dos meus concontribuintes não terá a mesma opção. Irão atrás de uns quaisquer rebuçados que os orçamentos do momento deem para convencer à adesão a esta fatura sem papel. A privacidade não é valorizada, as intromissões estatais abusivas são vistas como corriqueiras, os cordeirinhos não entendem que nunca se deve ceder informação se não aquela que beneficia os indivíduos (informações de saúde para o SNS nos tratar devidamente, por exemplo). E os governos, claro, e de qualquer partido, aproveitam-se desta tolerância ao escancarar dos limites do que devia sempre ser privado. Com o mais nobre fim da governação à portuguesa: cobrar impostos.