Há uma linha que separa “fazer conversa” de desconversar. Fazer conversa (ou “encher conversa”) talvez seja um modo de falar de forma séria de coisas quase sem importância. Desconversar, falar de coisas sérias de uma forma tão lateral que as torna quase insignificantes. Seja como for, fazer conversa e desconversar serão, no final de contas, uma renúncia à conversa. Que é, de certo modo, uma maneira de se delapidarem e de se alienarem relações. E de se desistir da pessoa com quem não se conversa. Ao mesmo tempo que damos a entender que gostamos dela! Se já é grave que se faça conversa com terceiros que só tentam conhecer-nos (e, de certa forma, gostar de nós), fazer conversa com pessoas indispensáveis na nossa vida é uma forma de as condenar a uma espécie de exílio, no nosso coração. Sem lhes darmos um motivo para isso, sequer. E sem nos darmos conta que – morrendo desse modo, em nós, aos bocadinhos –  “morremos” com elas.

Será possível que as pessoas que não falam do essencial que há em si, ainda assim, afirmem que se amam? Só se for para desconversarem. Mas o mais grave é que, muitas vezes, fazemos conversa com coisas sérias. Falar só das crianças ou, unicamente, do trabalho é, talvez na maioria das vezes, uma espécie de “arte” de “fazer conversa” numa família. Quando há, por exemplo, traves-mestras duma relação de casal por esclarecer. Afirmar-se: “Sabes como eu sou”, “Eu nunca tenho razão…” ou “Já sei que não faço nada bem feito…” entra mais pelo desconversar adentro. Por outras palavras, é à custa das coisas sérias de que não se conversa e dos “à partes” com que se desconversa que todos nos separamos. De comum acordo e por mútuo consentimento. Muitas vezes, por amor; claro…

É engraçado que, talvez à custa daquilo que perderam por não conversar, os pais tenham a ilusão de que conversam muito com os seus filhos. Talvez, sem quererem, falem demais; mas conversem de menos. Unicamente porque conversar supõe que se escute. E, ainda, que se imagine com aquilo que se sente, quando se escuta. E talvez todos nós nos escutemos uns aos outro muito menos do que devíamos.

Mas tudo isto me surgiu quando, num dia destes, uma pessoa me falava das conversas que tinha com a sua avó. Reclamando com aquilo que elas tinham de um bocadinho enfadonho. E que seriam, em demasia, sobre doenças e maleitas. E sobre coisas mais ou menos “sem importância”. O que fazia com que, falando com ela, se sentisse, quase sempre, ora a fazer conversa ora a desconversar.

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A verdade é que eu acho que não falamos com as pessoas mais velhas de forma séria. Falamos, vezes demais, com tiques de supremacia! E percebemos com muita dificuldade que elas se tentam (delicadamente) adequar àquilo que imaginam que esperamos delas. Porque, no fundo, sentem (bondosamente) que não temos uma capacidade por aí além para as escutarmos. Imaginamo-las mais destituídas do que são. E com lacunas grandes na sua sensibilidade. Como se o seu envelhecimento nos levasse a supor que deixam de pensar. E, ao contrário daquilo se passa, ficassem menos esclarecidas e menos acutilantes.

Falemos verdade: pode uma pessoa mais velha aceitar que se fale para ela como se fosse uma criança, pequenina, como se ela não percebesse a desconsideração e isso não fosse desconversar? Poderá ela encher o peito de ar e reclamar a clarividência daquilo que ela pensa se, no final de contas, se sente (muitas vezes) a ter de se “portar bem” para merecer umas gotinhas de atenção e de “amor” (muito menos, todavia, do que ela teria, legitimamente, direito a receber) sem que, diante disso, acabe a “fazer conversa”? Poderá insurgir-se com a falta de visitas, de telefonemas e de mensagens, dos filhos e dos netos, sem os repreender e sem os advertir, se, de certo modo, se sente sob uma coacção do género: “se me porto mal, deixam de gostar de mim” sem que, em função disso, não consiga senão ora fazer conversa” ora desconversar?

E poderia sair, consumir e ter os pedaços de vida a que se sentisse com direito quando os seus rendimentos são tutelados, na maioria das vezes, e se, em muitas circunstâncias, nem direito a uma mesada, retirada do seu dinheiro, acaba por ter? E não ter “vontade de desistir” de viver se, por exemplo, a ameaça de passar a viver num lar é real, quase todos os dias, e se um lugar desses é uma espécie de fusão entre uma tutoria com um infantário para pessoas crescidas (com a agravante delas terem a sabedoria e a clarividência que as crianças não têm, pagam o confinamento a que estão remetidas e como se não entendessem que um lar de idosos é a antecâmara a que se tem direito antes de se morrer)? E podem as pessoas mais velhas não se reconhecer no seu corpo ou lutar por melhorá-lo, por exemplo, sem olhares de soslaio com que se “desconversem” os seus gestos? E pode uma pessoa mais velha não fazer os possíveis e os impossíveis para se distrair (com telenovelas, por exemplo) – ao contrário dos nossos filhos, para quem tudo o que é distração em demasia “faz mal” – e, diante de tudo isso, não termos nem sequer  a bondade de as resgatarmos para a vida, como devíamos fazer? E podem reclamar o orgulho se não se reconhecem (no seu corpo, na sua vida ou na sua autonomia) e têm, sobretudo, a vergonha do seu presente? E podem não falar, sobretudo, do passado se todos lhe fazem sentir que não têm futuro? Como podem não viver a pedir desculpa se – ao subirem as escadas, ao saírem de um carro, ou ao caírem, mais vezes – parece existir um olhar amoroso de menos em relação a si? E como podem não falar das doenças de alguém que conhecem ou de alguém que faleceu se essa é a forma possível de aflorarem o seu medo de morrerem (tal é a determinação e o cuidado com que se entregam à vida)?

Sim, as pessoas mais velhas são exímias na forma como “fazem conversa”. Não porque sejam mais velhas. Mas quando têm medo que não sejamos capazes de as escutar. Ou quando, de tão atulhados de tantos preconceitos, reconhecem que, em relação a elas, passamos a vida a desconversar.

É verdade que me assusta a forma displicente como aceitamos que haja quem viva em confinamento há 8 meses. Que não se viva este “isolamento profiláctico” quase como enlouquecedor já me assombra. Que se resista a ele e se insista em estar-se vivo só me surpreende. Ou talvez não. Será “fazer conversa” ou desconversar outra coisa que não seja circunscrever, cercar, isolar ou confinar? Não é! É por isso que, com tanta experiência a confinar, resistem e resistem e não desistem. Será, ao menos, legítimo que as possamos, só, admirar?