A felicidade no Planeta Covid-19 soa a uma real utopia.

A busca pela felicidade é o que mantém o humano ancorado à existência como uma seta apontada no horizonte da vida. Na Grécia Antiga, a felicidade foi um tema muito discutido na Filosofia. Na concepção de Aristóteles, A felicidade é o sentido e propósito da vida, o único objectivo e finalidade da existência humana. O ser humano é, acima de tudo um animal social, dotado de sensibilidade, sentimentos e emoções e precisa de afectos como de pão para comer. O antropocentrismo erigido na estrutura do pensamento moderno que coloca o homem como a medida de todas as coisas graças ao desenvolvimento científico que, paulatinamente, passa a ditar as regras sociais e de saúde da população.

Um exemplo do desenvolvimento científico, na medicina – é que este passou a definir corpo ideal com medições dos níveis de colesterol, glicémia e etc. O avanço do conhecimento no domínio da medicina acabou por toldar o modelo de corpo saudável e os governos, através de campanhas de marketing social, procuraram a promoção da saúde pública com o objectivo de minimizar a despesa da saúde pública para o Estado. No seio da sociedade delineou-se o corpo perfeito, com exibição de fotografias nos ginásios, com publicidade de corpos jovens, musculados, belos e esbeltos e que passam a fazer parte do quotidiano nos indivíduos – nalguns casos numa profunda obsessão por músculos levam a outro tipo de consequências.  O estereótipo de corpo definido e musculado com todas as medições e IMC integra o imaginário do corpo colectivo na sociedade moderna e quem não se enquadrar neste modelo corre o risco de estigma. Portanto, na medida que o conhecimento avança a sociedade vai-se adaptando e moldando em função do conhecimento científico.

A sociedade moderna do conhecimento, graças aos avanços científicos e tecnológicos, os governos de todo o mundo passaram a integrar nas suas agendas políticas o cálculo dos riscos. Especialistas e peritos de riscos surgem, nomeadamente, no âmbito das ciências da natureza ligados aos eventos da Natureza e, posteriormente, ao desenvolvimento da engenharia nuclear e tecnológica.  A vida humana moderna é baseada na gestão dos riscos, desde cálculo dos riscos pessoais, sociais ampliados a escala mundial na sociedade mundial do risco, como refere Ulrich Beck, na sua obra: Sociedade de Risco Mundial (em busca da segurança perdida). O conhecimento científico mitigou alguns riscos perante o aumento significativo de outros.  Na perspetiva de Ulrich Beck, a vida na Sociedade de Risco Mundial – “Significa viver com um não -conhecimento insuperável, mais precisamente, na simultaneidade da ameaça e do desconhecimento e dos paradoxos e dilemas políticos, sociais e morais daí resultantes” (Beck: 2015, p.153). O desconhecimento referido por Beck traduzido para a nossa actual realidade em relação a ameaça global do Covid-19 e, subsequentemente, o medo da morte — mostra-nos claramente a falibilidade do humano e das suas construções económicas, políticas e sociais. Num ápice, o mundo sofre uma metamorfose sem noção do que surgirá — Homem ou bicho?

O humano moderno acreditou que o domínio do conhecimento alcançado pela ciência com recurso à tecnologia levaria o Homem a assumir o papel de criador do seu próprio destino.  O fado perece estar mais nas mãos do Homem do que no determinismo do Deus criador do Universo. O Homem do conhecimento é o que leva Ludwig Feuerbach a advogar que o Homem criou Deus pela necessidade de perfetibilidade divina contra a imperfeição humana.  O sujeito moderno toma o lugar de Deus no pináculo da criação, até que um vírus (RNA) pequena quantidade de ácidos nucleicos) silencia e, concomitantemente, desafia a sociedade do conhecimento, evidenciando que o domínio dos Homens sobre o Mundo é um eufemismo no discurso da Primeira Modernidade.

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A globalização ao derrubar a geometria dos territórios e a facilidade da comunicação física e tecnológica acelerou a multiplicação dos riscos e a ampliação dos mesmos através da comunicação (média) na Sociedade de Risco Mundial.  Na sociedade mundial dos riscos, nós não somos todos iguais – há aqueles que são afetados e outros que não. Por essa razão, Niklas Luhmann, autor da Teoria dos Sistemas, faz uma distinção entre perigo e risco. Exemplificando o parágrafo acima na distinção entre perigo e risco –, perigo todos nós corremos em relação a disseminação do vírus Covid-19, mas risco só correm aqueles que forem afetados por este. No mundo global somos todo atingidos pelo risco de contrair a Covid-19, mas não de forma igual. Os países desenvolvidos têm outos recursos e capacidade de resiliência e mitigação dos riscos que os países pobres não têm. Não. Não somos todos iguais. A ideia de Liberté, Égalité, Fraternité é o postulado vigente nas agendas políticas, semelhante à história da Alice no país das maravilhas, dando-se ao povo uma broa quente e uma sardinha na hora das eleições para o cativar e, assim, estes lá vão como cordeirinhos às urnas.

O mundo moderno e os avanços da ciência trouxeram-nos coisas extraordinárias e notáveis, mas também, nos trouxe imensos senãos, nomeadamente o controlo humano através da tecnologia. Pensávamos nós que vivíamos num mundo livre! Pensávamos nós que George Orwell e Aldous Huxley eram utopias, pois já não sei nada. É verdade que há muitas teorias da conspiração, mas é assustador como é que algumas se parecem com a realidade, até dá medo! Retomando o meu raciocínio sobre o desenvolvimento tecnológico na nossa sociedade mundial, esse desenvolvimento permitiu o desenvolvimento de uma outra sociedade virtual alicerçada nos fluxos de comunicação sob um espaço de desterritorialização, onde a proximidade física está em grande escala substituída pelas comunidades virtuais. O espaço físico dos afetos perde terreno para o mundo imaterial do Amor líquido, onde tudo é de rápido consumo e descartável, porque o próprio corpo é um objecto mercantil cujo desejo só dura no momento da líbido. A Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman mostra bem a fragilidade das relações humanas e da infelicidade dos Homens do nosso mundo que conhece o preço de tudo mas o valor de nada. O humano já estava carente no mais intrínseco de si, a humanidade. O vírus da Covid-19 só veio exacerbar a fratura dos laços afectivos no coração dos Homens já carentes.

Contrariamente a premissa cartesiana que divide o cérebro do corpo e a racionalidade do eu penso, e sim, eu só penso porque tenho consciência que penso, daí a racionalidade humana, mas a vida humana não se passa na dimensão racional. O humano não é um só um cérebro que pensa, mas sim um corpo que pensa porque tem um cérebro. Eu penso com o meu corpo. O humano é um ser de relações a si e ao mundo – uma narrativa que se nutre, essencialmente, de afetos, tal como: abraçar, beijar, tocar, rir, chorar, sentir empatia e partilhar sentimentos. O sujeito é uma história contada, até porque se alguém me perguntar quem eu sou, eu conto a história da minha vida para definir aquilo que sou. O sujeito não é só uma estrutura baseada numa arquitetura sináptica do cérebro, mas o seu cérebro é modulado na geometria do Espaço-tempo da experiência vivida no mundo da vida pelo seu corpo. Eu sou as memorias dos livros que li, sou as músicas que ouvi, sou as viagens que fiz e os amores que vivi plasmados dentro do meu peito e forjados na minha memória. O vírus da Covid-19 veio para nos levar tudo. A Covid-19 não só ergue uma guerra económica contra os mais fracos e acentua a miséria e desigualdades sociais, mas também veio tornar-nos, ainda menos humanos. Quando vejo o Slogan “Vai ficar tudo bem” fico irritada. Todos sabemos que não é verdade. Não ficaremos todos bem e não sabemos que nundo nos espera e, provavelmente, não me parece uma viagem fantástica ao interior da terra.

Segue-se a estética do Novo Mundo a que poderíamos denominar de Planeta Covid-19, onde os humanos passam a habitar o mundo com regras de comportamento tipo robots, que incluem distanciamento físico, máscaras e luvas. Os novos acessórios de moda Covid-19 passam a incorporar o quotidiano da “Vida Normal”. O vírus da Covid-19 impele-nos à viagem no lôbrego corredor do medo sem destino nem hora marcada, porque não sabemos quando isto vai acabar, cujo Primeiro Ministro afirma que só sairemos daqui quando houver uma vacina. Ora, todos sabemos que poderá haver vacina como nunca vir a ser descoberta nenhuma vacina. Quando anos é que nós esperamos pela vacina do HIV. Com base na incerteza científica e na ampliação do risco, os governos optam pelo confinamento da população e o fecho da economia. O mundo físico parou – decretou-se estado de emergência, todos os direitos e garantias fundamentais foram suspensas e os cidadãos ficaram prisioneiros da sua própria casa baixo controlo policial. A comunicação social todos os dias mostrava as imagens do espetáculo da morte, com lindos caixões enceradinhos e com uma rosa vermelha no centro — a beleza das exéquias funerárias do Mundo Covid-19, onde os doentes morrem e são enterrados sozinhos. O Medo fora exacerbado até ao ínfimo detalhe digno de filme de terror exibido nos canais de televisão pública, onde se cultiva a tragédia para se prender as audiências. O mundo está cheio de medo e grande parte da população está disposta a viver no big brother mundial e trocar a liberdade pelo controlo totalitário da falsa segurança por medo de contrair o vírus. No Mundo Covid-19, as praias serão policiadas por fuzileiros para garantir o distanciamento físico, até dentro de água, quando alguns especialistas garantem que o vírus não se transmite na água salgada. A liberdade parece algo que pertence ao passado e o amor também irá morrer no mundo da Covid-19, porque a proximidade e o toque é o que nos faz humanos e cria laços afectivos  na humanidade. Tenho medo do mundo Covid-19 e não da Covid-19.