Depois dos riscos do terrorismo terem servido para que as liberdades individuais tenham entrado numa longa e obscura quarentena, temos todos vindo a conviver com uma “naturalidade” fora do vulgar com a forma como, por causa da pandemia, muitos valores da Humanidade têm vindo a ser colocados num certo confinamento. Evitar, não tocar, desconfiar e desinfectar parece ligar-se mais a uma ideia de higienismo do que, propriamente, à humanidade calorosa com que as pessoas assumem causas, as vivem com paixão, se transformam umas às outras e mudam o mundo. Mas, em nome de um bem comum que entendemos proteger, nós cumprimos. Sobretudo quando, no meio de tanta assepsia, reclamamos, damos, cuidamos e protegemos. E, mesmo quando são muitas as coisas que nos convidam a não pensar e a confinarmo-nos ao silêncio, nós – felizmente – insistimos. E pensamos.

Mesmo quando nos vemos a confinar crianças, a afastá-las da escola e a introduzir um medo muito próximo do do Papão no seu crescimento (que não se vê, mas que pode matar). Mesmo quando desinfectamos as suas mãos, repetidamente, de uma forma obsessiva. Por mais que isso também sirva para lhes pedirmos para que elas vivam com alma, mantendo, todavia, uma distância de segurança em relação à vida. Ou que conheçam, mas não toquem. Ou que se relacionem enquanto se afastam. Mesmo que o uso de máscara, que vai sendo obrigatório para idades cada vez mais precoces, as desconcerte. Porque é como se o rosto que comunica fosse excluído da forma como se fala e os sorrisos ficassem encobertos ou escondidos. Ou mesmo quando as normas de saúde que foram recomendadas para as creches e para os jardins de infância nos “abalroassem” e parecessem resumir-se, num primeiro momento, a uma fórmula do género: para sua segurança, recomenda-se que as crianças não sejam crianças.

Mas agora, que se recomende que as crianças em perigo, que são judicialmente protegidas das maldades dos seus pais – e que, para sua protecção, são afastadas deles – sejam colocadas em centros de acolhimento, no meio de estranhos e de outros meninos tão aterrorizados como elas (sim, porque estar em perigo, às mãos dos pais, traz experiências de quase-morte!), tenham de ficar em isolamento durante 14 dias, e que se afirme que “isolar não é abandonar” já passa – desculpem-me! – para lá do razoável.

Ser-se protegido dos maus tratos dos pais é estar-se abandonado, sim! Ser-se confiado a estranhos (que serão, todavia, pessoas de bem, empenhadas e comprometidas) é ser-se, sem dúvida, abandonado uma segunda vez. E estar em isolamento 14 dias, num lugar que não se conhece, depois de se ter passado “sabe Deus” pelo quê, é exigir a uma criança um entendimento demasiado exorbitante para a sua capacidade de entendimento. Isolar só é proteger, como aconteceu na quarentena, quando o isolamento se faz sob a protecção e em presença dos pais. Agora, quando uma criança é isolada dos pais e isolada dos outros, e é isolada dos lugares que lhe são familiares e isolada do mundo, sente-se abandonada várias vezes!

É por isso que é com um desconforto muito agreste que vamos vendo que algumas medidas em nome da sua protecção nem sempre consideram a saúde mental das crianças com o rigor e com o equilíbrio com que todos esperávamos que acontecesse. Só assim se percebe que isolar crianças retiradas à sua família durante 14 dias tenha merecido uma afirmação como: “Isolar não é abandonar.” E, como se isso não fosse já grave, que ninguém, ao menos, se perguntasse: “E se estas crianças em perigo fossem, só por hipótese, os meus filhos ou os meus netos?”. Isolar seria abandonar; sim ou não? A resposta seria, naturalmente, sim. Então, se não faz sentido querer para outras crianças outra coisa que não seja aquilo que queremos para os nossos filhos, como podem os gestos de humanidade estar confinados a ponto de, quem comunica medidas de saúde, não compreenda que uma criança isolada dos seus pais (mesmo quando eles às expõem a perigos) e isolada dos outros é uma criança exposta ao perigo em nome da sua protecção?

Caras Sra. Ministra e Sra. Directora Geral da Saúde, todos reconhecemos o turbilhão de exigências e o trabalho quase absurdo a que, desde há muito tempo, têm estado submetidas. Para o bem de todos. E, acreditem, estamos reconhecidos (muito reconhecidos) por isso. Mas, por favor, repensem aquilo que afirmaram. Felizmente, há crianças! Que nos ajudam a descentrar dos registos mais técnicos e mais frios. E nos ajudam a perceber que, em nome delas, pandemia e humanidade terão de continuar a conjugar-se com a delicadeza e a atenção que, sem elas, nem sempre seria possível. Sobretudo quando se trata de proteger crianças. Quando, para mais, elas estão em perigo.

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