A discussão terá surgido nas redes sociais após as felicitações de Ursula van der Leyen e Hillary Clinton a Giorgia Meloni pela sua vitória nas eleições como uma vitória também para as mulheres. Portanto, um momento de celebração feminista. A discussão terá sido se essa vitória eleitoral, por vir de uma populista de direita, deveria ou não, ser celebrada como um «marco para o feminismo». Como todos os que não têm redes sociais – e esta é uma outra discussão que, mais do que nunca, vale a pena trazer para o espaço público – soube dela mais tarde, através do belíssimo artigo de 2 de Novembro, de Maria João Marques, no Público, que me conduziu às posições de Carmo Afonso e de Susana Peralta, respectivamente, defensoras de não ser uma vitória feminista e sê-lo.

Já aqui tive oportunidade de afirmar, a propósito da minha inequívoca defesa das quotas e da fraca representação das mulheres no PSD, tal como no ensaio que escrevi em 2013, As camas Politicamente Incorrectas da Sexualidade Contemporânea, que a ortodoxia feminista, por muito que se aproprie, não é dona do feminismo. Não há qualquer interesse em polarizar este, ou qualquer outro debate, nem para simplificar os seus termos: os avanços feitos na conquista de direitos das mulheres devem muito a essa ortodoxia, mas foram e são ainda prejudicados por ela.

Sim, a vitória de Giorgia Meloni deve ser celebrada pelas mulheres. O populismo de Giorgia Meloni deve ser combatido. Nem sequer é complexo: são coisas de natureza distinta.

O feminismo não é o que a esquerda e a extrema esquerda determinam que é, tal como quem decide quem é feminista não é o colectivo feminista da extrema esquerda e da esquerda. Este erro contemporâneo, de um grupo social e culturalmente dominante decidir por todos, já aconteceu anteriormente quando, na Inglaterra vitoriana, um grupo poderoso mas minoritário de mulheres decidiu o que e para quem era o feminismo. Nesse período, o movimento feminista poderia ter sido constituído à escala global como refundação civilizacional se os ideais decorrentes da revolução francesa e os valores e direitos civis do movimento abolicionista se lhe tivessem mantido associados. Este movimento caracterizava-se por ser inclusivo. De todos para todos. A incapacidade de valorizar positivamente classe, género e raça cindiu este movimento para avançar com um feminismo de segmento que ainda hoje reverbera em questões fundamentais, da prostituição à pornografia e a movimentos educacionais controversos. Também por isto a questão Meloni não é uma questão menor. A prática de excisão das mulheres levada a cabo por mulheres não é uma tradição cultural, é uma perversão cultural, seja ela genital, social ou política.

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O feminismo não é nem deve ser a plataforma de um discurso homogeneizado, com uma agenda e ponto final. Só se fala a uma só voz quando não há liberdade. Essa que convém defender ainda que permita o pensamento, modo de vida e defesa de princípios de que discordemos em absoluto. No grande como no pequeno. Há exemplo de coisa menor do que Giorgia Meloni ter decidido, inicialmente, ser tratada por «o senhor presidente»? Ainda que vivamos no tempo da escolha de pronomes e essa escolha seja acerrimamente defendida pela esquerda no que à fluidez de género diz respeito… Pilar del Rio decidiu ser tratada por «a presidenta» – sendo que aqui a questão nem é pronominal. É um erro equivalente a exigir tratamento por «taxisto», por ser homem, em vez de «taxista». No entanto, são duas mulheres presidentes, uma de um conselho de ministros, a outra de uma fundação de um Nobel da Literatura, e isso merece ser celebrado.

Então, parabéns, senhor Primeiro Ministro, Giorgia Meloni.

A autora escreve segundo a antiga ortografia