Este é o primeiro de vários textos sobre a representação política das mulheres e os dilemas do feminismo contemporâneo. A representação na vida política, cultural e económica de grupos historicamente marginalizados, como as mulheres, as minorias étnicas ou religiosas, é um objectivo muito importante para tornar a democracia mais inclusiva. No entanto, caso acontecesse a representação plena, isso seria louvável não pelo seu simbolismo, mas sim porque mostraria que algo substantivo teria mudado na sociedade.

Um dos mais importantes trabalhos no estudo da representação política faz uma distinção entre representação descritiva e representação substantiva. Por um lado, a representação descritiva acontece quando um representante político partilha características com os seus eleitores, sejam características físicas ascriptivas ou uma trajectória de vida resultante de uma socialização semelhante. Por outro lado, a representação substantiva tem lugar quando os políticos contribuem, através, por exemplo, do seu trabalho parlamentar, para a formulação de políticas públicas que correspondem às preferências da população que representam. Isto é, sendo agnóstico em relação às características ascriptivas dos políticos, estes podem, através das suas acções concretas, servir os interesses substantivos dos representados. Nesta perspectiva, ser mulher não é uma condição necessária para desenhar e apoiar políticas públicas tendentes a apoiar este “grupo social”, o que quer que isso signifique. Utilizando uma analogia imperfeita, se a representação descriptiva se refere à forma, a representação substantiva refere-se ao conteúdo.

Se a representação descriptiva fosse suficiente, poderíamos escolher o parlamento através de uma lotaria em que cada cidadão tinha a mesma probabilidade de ser escolhido. Em termos puramente probabilísticos, essa seria a melhor forma de garantir que uma assembleia representa um microcosmo da sociedade. Para além disso, se a representação descritiva fosse suficiente, não seria necessário que os deputados fizessem mais do que aparecer. Pelo contrário, as nossas democracias representativas baseiam-se numa concepção substantiva da representação política: cidadãos livres e iguais perante a lei escolhem o seu próprio destino e a direcção em que querem ser governados.

A importância da representação descriptiva teve a sua origem nos debates sobre a representação das mulheres e dos negros na política nos EUA, desde os anos 1960, quando importantes movimentos sociais pelos direitos civis ganharam força, e muitos argumentaram a favor da importância do valor descritivo e simbólico da representação política. Um dos argumentos utilizados desde então foi, precisamente, que um aumento da representação descritiva de certos grupos levaria a um aumento da sua representação substantiva.

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No entanto, não é garantido ou automático que a pertença a um determinado grupo social proporcione ao representante uma maior capacidade de comunicação com os membros desse grupo. Tal capacidade pode ser maior se o representante tiver laços a determinadas comunidades ou experiências de vida passadas que lhe permitam identificar melhor os interesses desses grupos sociais. Mas, ainda assim, uma eventual relação positiva entre representação descriptiva e substantiva é uma questão empírica e variável de contexto para contexto, não é algo automático. Muitos estudos empíricos recentes tentam perceber se essa relação positiva existe. Por exemplo, um estudo recente, analisando mais de 80 mil comunicados privados entre congressistas e agências federais norte-americanas, conclui que o género dos congressistas aumenta a probabilidade destes se focarem em assuntos relacionados com o seu sexo. No entanto, o efeito da ideologia, independentemente do género, é cerca de 2.5 vezes maior. Esta conclusão mostra que, em muitos contextos, a ideologia é mais importante do que a característica descritiva do representante para explicar as suas acções.

Para além disso, não é evidente quais os grupos sociais que devem estar representados descritivamente, e em que proporção, nos órgãos políticos. Se hoje é relativamente consensual que as mulheres e minorias étnicas devem estar representadas, também não deveriam estar representados os jovens, os deficientes, os emigrantes e imigrantes, as várias correntes religiosas, os pobres e os trabalhadores de classe média-baixa? Será que esses grupos não merecem também a nossa atenção e quotas de representação descritiva? No limite (ao absurdo), as identidades a representar poderiam ser infinitas (vegetarianos e omnívoros, ruivos e morenos, canhotos e destros, etc.).

Creio que a solução para estes dilemas passa por fazer da representação algo primordialmente substantivo, privilegiando os interesses e identidades concretos que se debatem em cada momento. Simultaneamente importa garantir que a representação ocorra num contexto social e económico que não cause desequilíbrios sistemáticos na chegada de membros de nenhum grupo ao poder.

Obviamente, muitos académicos e intelectuais, como Jane Mansbridge, argumentaram que a representação descritiva tem um valor positivo simbólico em si mesmo, garantindo que os grupos historicamente marginalizados ocupam posições visíveis de poder. Ao fazê-lo, isso legitima a ideia de que são tão capazes de governar como todos os outros e, para além disso, conduz a um aumento da legitimidade e confiança nas instituições políticas.  O simbolismo poderá ainda aumentar o sentimento de “eficácia política” em certos grupos sociais historicamente sub-representados: a ideia de que as pessoas que são ouvidas pela classe política e que a sua voz tem impacto na decisão política, levando-as a participar no processo político. No entanto, este efeito poderá não ser linear no contexto de representação das mulheres. Quando há poucas, ou nenhumas, mulheres no espaço público, a sua entrada tem um efeito simbólico mais importante. À medida que um novo normal se instala, com maior representação feminina, o efeito simbólico tender-se-á a reduzir. Claro que, em sociedades como a portuguesa, parece-me que os sentimentos de eficácia política dependem mais da classe social e económica e do capital cultural, independentemente do género. Tal como um relógio, os marxistas estão certos duas vezes por dia.

Lendo o trabalho de Jane Mansbridge, académica de Harvard com credenciais feministas inatacáveis, percebemos ainda a necessidade de considerar os custos da representação descritiva, principalmente quando excessivamente enfatizada, e não apenas os seus benefícios. O mais importante desses custos é o essencialismo, isto é, a propagação da noção generalizada que existe uma essência comum de feminidade que todas as mulheres partilham entre si. Isto é, evidentemente, uma falácia. Na verdade, essa é talvez uma das grandes ironias e contradições do feminismo moderno: por um lado argumenta que o sexo é uma construção social, por outro lado aproxima-se perigosamente do essencialismo ao focar-se excessivamente na representação descritiva e simbólica.

No limite, o foco excessivo na representação descritiva está na origem de inúmeras controvérsias e mal-entendidos sempre que uma mulher de direita ou de direita radical chega ao poder, como recentemente aconteceu com a ascensão de Giorgia Meloni a primeira-ministra em Itália. Nessas ocasiões, deparamo-nos com algumas cronistasque argumentam que essas mulheres “não contam” para o feminismo em política e que a sua presença na política não deve ser “celebrada”, enquanto outras cronistas adiantam que o valor descritivo e simbólico dessas mulheres na política é tão importante quanto o de outras mulheres, mesmo discordando da sua ideologia.

Ora, a resposta a este dilema é relativamente simples: “as mulheres” não existem enquanto grupo homogéneo. Pelo contrário, são um grupo vastíssimo, que inclui pessoas com preferências políticas e ideologias muito heterogéneas. Não tem sentido tratar as mulheres como um grupo monolítico, que podem ser representadas por qualquer mulher em política. Afinal de contas, o que essas controvérsias revelam, é que todas – cronistas de um lado e de outro – consideram que a representação descritiva tem um alcance muito limitado. A satisfação com um representante político devido ao seu género ou cor da pele consiste numa visão rudimentar da política. Todos queremos, acima de tudo, substância. Assim, se as mulheres são um grupo heterogéneo, então devem ser – descritiva e substantivamente – representadas por um grupo heterogéneo de mulheres. Há mulheres na nossa sociedade que são a favor da preservação de papéis de género distintos na sociedade enquanto outras acreditam que esses papéis não devem impostos pelo Estado e pela sociedade, mas sim escolhidos por cada um. Na política, devem estar mulheres, assim como homens, conservadoras, de direita radical, libertárias, sociais-democratas, de esquerda radical. Atingiremos, assim, a maturidade democrática.

Obviamente que, há séculos, existem vanguardas esclarecidas que julgam saber decifrar o que é melhor para todos e para o porvir de certos grupos sociais. Essas vanguardas, porém, esquecem-se que não há indivíduos que tenham apenas uma única identidade social: uma mulher tem também uma etnia, uma religião, uma profissão, um rendimento, um tipo de família, uma orientação sexual, e múltiplas preferências políticas sobre o que quer para a sociedade. Para mais, nenhum de nós está disposto a sucumbir uma identidade pessoal complexa a uma única identidade social de grupo. Ou, pelo menos, não deveria estar. Em democracia, as várias identidades e múltiplas preferências dos cidadãos devem ser agregadas e representadas substantivamente.

Não sejamos ingénuos. Algumas destas vanguardas têm, naturalmente, objectivos estratégicos. Muitas mulheres e homens, principalmente de classe média-alta, têm construído e avançado as suas carreiras, inclusive na esfera pública, utilizando argumentos de representação descritiva e simbólica, que transformaram na sua (muitas vezes única) bandeira. A perversidade de utilizar problemas sociais e históricos sérios para a promoção pessoal, especialmente em classes privilegiadas, é uma autêntica aberração moral. Infelizmente, não me parece que a tendência esteja a abrandar.

Mas, para quem esteja interessado num debate sério, deixo a seguinte questão: será que não está na altura de nos focarmos mais na representação substantiva e menos na representação descritiva? Com a maturidade dos regimes democráticos e a normalização da representação de mulheres, a representação descritiva torna-se menos importante. Pelo contrário, é cada vez mais valioso representar substantivamente a diversidade de posições existentes dentro desses grandes grupos sociais. Assumindo que queremos uma sociedade com igualdade de género, será que o foco excessivo no simbólico não está a retirar atenção e energia valiosas que seriam necessárias para corrigir os mecanismos sociais subjacentes, muitas vezes não intencionais, que ainda causam desequilíbrios políticos e económicos entre homens e mulheres?

Cada dia que passamos a discutir se devemos utilizar linguagem neutra, se devemos celebrar ou repudiar uma estátua, ou qual o sexo dos anjos (literalmente), é um dia a menos a discutir – e a atrasar – reformas laborais, políticas públicas para pais e mães, e um regime eficaz e simples de creches gratuitas disponíveis para todos. É verdade que o debate político dura muito tempo e discute muitos assuntos, mas também é verdade que o tempo e a atenção de que o debate político dispõe são finitos. Os últimos anos convenceram-me que passarmos mais uma década a discutir questões simbólicas seria tristíssimo: seria atrasarmos o progresso social concreto em mais uma década.

Nas sociedades europeias e norte-americanas contemporâneas, o valor simbólico da representação política das mulheres está, no essencial, alcançado. A norma – de jure e de facto – é a igualdade entre sexos. Temos muitas e cada vez mais mulheres na política. A batalha agora deve ser outra. Temo que o foco excessivo no simbólico possa estar, neste momento, a prejudicar activamente o objectivo maior que é vivermos numa sociedade baseada no universalismo liberal de direitos e igualdade política, independentemente das identidades pessoais e sociais que cada um de nós tenha.