A proposta de Orçamento do Estado para 2021 mantém, nalgumas áreas que têm sido bandeira deste Governo, a mesma narrativa dos anteriores – anunciar para depois não fazer. Uma das matérias em que este modus operandi tem sido notório é o da receita consignada à Segurança Social, por forma a assegurar a sustentabilidade financeira do sistema. Lembram-se de Mariana Mortágua dizer que “temos de perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro”? E lembram-se de que foi aplaudida pelo PS? Pois bem, perderam a vergonha toda. De ir buscar o dinheiro e de não o entregarem a quem de direito.

A história é fácil de contar. Corria o ano de 2017, com o Governo a tentar mostrar serviço aos parceiros da “geringonça”. Uma das mais emblemáticas ideias constantes no Programa do Governo era a da diversificação das fontes de financiamento da Segurança Social. O contexto era de crescimento económico, pelo que era até a altura ideal para carregar na fiscalidade. É assim que nasce o Adicional ao IMI (AIMI). Criado em 2017, trata-se de um imposto aplicado aos proprietários de prédios urbanos com elevado valor patrimonial, para simplificar a definição. A respetiva receita líquida deveria então ser transferida pelo Estado, através do Ministério das Finanças, para o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social. Este fundo, por sua vez, tem vindo a acumular liquidez com o objetivo de poder vir a suportar despesa com pensões quando o sistema entrar em rutura. Ora, tratava-se de uma medida aparentemente bondosa, que carregava nos ricos para pagar as pensões dos mais desfavorecidos, contribuindo decisivamente para aguentar esse Titanic chamado pensões.

Anunciou, na altura, o Governo, que estaria, responsavelmente, a assegurar a sustentabilidade financeira do sistema de pensões da Segurança Social. Em 2017 e 2018 foram previstas receitas de 50 milhões de euros, exatamente o montante efetivamente transferido para a Segurança Social. Em 2019, apesar de a previsão apontar novamente para 50 milhões, foram transferidos 123 milhões de euros. Fantástico! Mas não nos equivoquemos! Não, o Estado não está a ir além do que houvera prometido. Vamos, então, à realidade dos factos.

A receita líquida apurada do AIMI a transferir para a Segurança Social em cada um dos anos, de 2017 a 2019, foi de 131, 140 e 152 milhões de euros, respetivamente, tendo ascendido a quase 423 milhões! Apesar da narrativa de responsabilidade levada à exaustão, a verdade é que entraram nos cofres da Segurança Social apenas 223 milhões de euros, pouco mais de metade do previsto.

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Mas a farsa não fica por aqui. Para 2020, o Governo terá pretendido, ainda que fora do tempo, corrigir a mão, compensando os cofres da Segurança Social dos sucessivos desvios a que já nos vamos habituando. Acontece, que dos 283 milhões de euros de receita prevista para este ano, foram efetivamente transferidos uns “espantosos” 3 milhões! O que até se compreende pelas piores razões, pois fechar um Orçamento em que tudo se promete sem o correspondente financiamento assegurado, implica que se mascare a receita sem qualquer pudor.

Perante tamanha farsa, confesso que estava muito curioso para ver o que, a este respeito, espera o Governo para 2021. As novidades não são fantásticas, mais uma vez. A previsão de receita do AIMI não passa dos 140 milhões de euros. Pode ler-se pela página 100 do Relatório do OE, que “o Orçamento da Segurança Social contemplará em 2021 uma transferência extraordinária de 517 milhões de euros com origem em receitas do Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (140 milhões de euros) e da parcela do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (377 milhões de euros) para equilíbrio do sistema previdencial — repartição”. É absolutamente espantoso que o Governo consiga adjetivar como “extraordinárias” duas transferências que o próprio executivo gerou com o objetivo de salvaguardar o futuro do sistema de pensões! Para quem lê, até parece que o Estado está a fazer um favor aos pensionistas ao transferir para o sistema de Segurança Social uma receita que é legalmente devida. E que tem, inequivocamente, pecado por chegar tardiamente e a conta-gotas. É, no entanto, uma grande falácia! Não é o Estado que está a financiar a Segurança Social. É exatamente o oposto. É a Segurança Social que está a financiar a atividade corrente do Estado, a coberto de um imposto que foi criado com um objetivo muito diferente.

É oportuno, porém, deixar aqui uma nota de enquadramento aos números, para que o leitor possa ter uma ideia do que estamos a falar. Um mês de pensões da Segurança Social custa cerca de 1300 milhões de euros, dos quais cerca de 1000 milhões respeitarão ao sistema previdencial. É quase cinco vezes mais do que o valor transferido por conta do AIMI em três anos! Dito de outra forma ainda mais clara, em três anos, o Estado injetou nos cofres da Segurança Social uma quantia que daria apenas para pagar perto de uma semana de pensões.

Suspirem e respirem de alívio os atuais e futuros pensionistas, pois estamos em boas mãos…