É raríssimo um dirigente militar dizer que as rivalidades corporativas entre os exércitos têm impacto negativo sobre o produto que deve servir o país; mas o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA) fê-lo no Parlamento há dias. Na linha de várias posições públicas de militares reformados, as comunicações dos comandantes dos exércitos no Parlamento, há dias, mostraram que a sua prioridade é a defesa do seu exército. Em regra, os oficiais seguiam uma analogia orgânica e viam-se como a cabeça de um corpo (o seu exército), autossuficiente e autónomo; muitos ainda sonham com esse modelo. Com frágil formação doutrinária sobre o Estado de Direito Democrático (EDD), não espanta que um anterior comandante da Armada tenha notado, embora num sentido mais limitado, o seu “desgosto” por o atual CEMGFA defender “o contrário do que defendia quando era CEMA e quando servia sob as minhas ordens”; nem pode espantar a persistência destas visões, desajustadas do regime.

Qualquer estudioso das relações civis-militares, cá ou noutro país, sabe daquele impacto negativo. O corporativismo une e ajuda a fortalecer um grupo, mas sem uma orientação forte externa torna-se autocentrado e ineficiente, até perigoso; esta reforma, como outras antes, tem-no mostrado. A competição entre exércitos pode parecer um método eficaz para os controlar, como a concorrência entre empresas, mas dadas as diferenças só traz desperdício. Esta reforma não faz desaparecer tal competição; só baixa a síntese para o plano administrativo.

Os comandantes dos exércitos defendem a unidade de comando, mas só no seu exército, mostrando implicitamente que não há uma instituição militar – há três corporações. Não deram contributos para melhorar os diplomas em linha com a orientação política (legítima). Não disseram que as tarefas de que são incumbidos, além da sua única missão constitucional, afetam esta – como bem diz o comandante da Armada, “treino e avaliação geram competência”, a qual se perde quando não treinam ou não executam operações militares; sobre esse desperdício de recursos nada dizem. Nem propuseram aumentar a transparência, por exemplo, com a audição parlamentar dos comandantes indigitados. Concentraram-se no seu poder e em o preservar. Isso é corporativismo.

É de realçar que o comandante do Exército concluiu a sua comunicação notando que, para lá das suas posições, cumprirá as “missões e tarefas subsequentes”. Terá querido dizer que os militares do Exército cumprirão as ordens e normas jurídicas (constitucionais, legais e administrativas) a que estão vinculados; mas é louvável ter a iniciativa de o dizer.

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O comandante da Armada declarou na sua comunicação que “a Marinha existe para servir Portugal” e é verdade. Pode ser só uma figura de retórica. Ou pode visar sugerir, de modo mais subtil, o que uma associação de oficiais já disse: “O juramento dos militares é feito perante toda a comunidade (O Povo) e não qualquer partido, qualquer Governo, qualquer composição circunstancial da Assembleia da República, sequer perante qualquer Presidente da República”; isto é, os exércitos terão a sua legitimidade na Nação, acima da supremacia civil e da subordinação aos órgãos de soberania. Isso é corporativismo.

É difícil conciliar proclamações de serviço ao país com corporativismo. Por exemplo, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos concluiu, pelo Parecer nº307/2020 (16-Dez), que deveria ser fornecida ao autor informação sobre dotações e efetivos dos serviços da Autoridade Marítima, sobre o processo de aquisição do Sistema Costa Segura, ou sobre a organização do Serviço de Busca e Salvamento Marítimo; está no poder do comandante da Armada libertar tal informação (que devia estar no espaço público), mas não a liberta nem dá qualquer explicação. Ou a exclusão pela Academia de Marinha, que depende do comandante da Armada, de abordagens da Autoridade Marítima que se afastem da posição oficial da Armada; além de negar o conceito de academia, contrasta com a posição do atual Presidente da Academia de Marinha (anterior comandante da Armada), enquanto subscritor da “carta dos 28”, a qual acusa o Governo de “uma tentativa de imposição de pontos de vista únicos”. O fechamento é corporativista.

Enfim, na sua comunicação, na linha da prática bem conhecida, o comandante da Armada procura aproveitar a oportunidade para alterar não só as matérias em debate, mas ainda outras, de polícia marítima. Sempre afirmam que tudo o que fazem tem cobertura legal; mas os comandantes da Armada tentam reiteradamente introduzir bases legais para o que fazem ou para alargar o seu poder. Por exemplo, os despachos do CEMA nº34/14 e 01/15 visaram pôr em vigor decretos-lei para criar novos cargos (como o Comandante das Operações Marítimas, COMOPMAR) e habilitar os oficiais de navios de guerra a fazerem de polícia no mar, em desconformidade literal com a Constituição; ainda surgiu o designado “DL 234/2017”, confirmado oficialmente, mas que não passou de anteprojeto. Isso é corporativismo.

Os oficiais podem não gostar do EDD, podem não gostar das normas constitucionais e legais, podem valorizar o seu exército acima de quase tudo, podem não gostar dos recursos e orgânica da GNR (ou outro serviço público qualquer); mas, no ativo, estão vinculados ao juramento de guardar e fazer guardar, e cumprir, a Constituição e as leis – que invocam quando elas lhes servem – e não são livres de as querer mudar. A posse das armas mais poderosas do país permite aos oficiais impor a sua vontade sobre os demais cidadãos; para o evitar e viabilizar o EDD, os militares estão sujeitos a restrições no exercício de determinados direitos.

Estou convencido que os três comandantes dos exércitos pensam estar a proceder bem. Mas têm uma posição focada no seu serviço e não no produto. Numa política pública, o produto e a apreciação pelos órgãos de soberania eleitos – só estes têm a legitimidade originária, democrática para falar pela Nação – prevalecem sobre o produtor. Se o produtor quer impor, ou impõe, o produto, isso é corporativismo.

Tudo isto devia ser óbvio para quem conheça o essencial dos dois últimos séculos da vida política em Portugal: só há poucas décadas se vive num EDD; antes eram naturais as pressões e as intervenções militares. Veremos se os deputados não “têm receio de enfrentar os almirantes” e concluem a reforma sem ceder às pressões corporativistas.