Marine Le Pen, a candidata anti-europeísta e pró-russa, perdeu, e o governo alemão precipitou-se a proclamar que a França “continua no coração da Europa”. O que Berlim não disse, mas deve saber, é que no “coração da Europa” está agora também uma dúvida.

Nesta segunda volta das eleições presidenciais, o regime francês tinha tudo a seu favor: do outro lado, uma candidata diabolizada todos os dias em todos os ecrãs e primeiras páginas; do seu lado, um jovem sem o cartão dos velhos partidos e disposto a dizer o que fosse preciso para agradar à direita e à esquerda. Mesmo assim, o regime não foi poupado à maior abstenção desde 1969. Marine Le Pen perdeu, mas com 34% de votos duplicou o resultado do seu pai; Macron ganhou, mas com 65%, longe da quase unanimidade obtida por Jacques Chirac (82%), apesar de Chirac já ser, em 2002, um velho político suspeito de corrupção. A outra observação é mais brutal: somando o voto de Le Pen e o dos outros soberanistas e esquerdistas da primeira volta, temos metade do eleitorado (cerca de 47%) disponível para votar em populismos e radicalismos anti-europeus. Isto era a Inglaterra antes do Brexit.

O segundo ponto é que Emmanuel Macron não foi apenas o candidato que derrotou Le Pen. É também, nesta fase, o candidato que a pode salvar. Macron pretende conseguir, em Junho, uma maioria parlamentar contra gaullistas e socialistas. Ou seja, propõe-se, com o seu novo partido En Marche, destruir as fidelidades dos partidos tradicionais do regime. Le Pen conta com o êxito de Macron, para de uma vez por todas declarar falida a estrutura de partidos que a tem impedido de reflectir nas instituições o voto que já vai conseguindo nas urnas. Se Macron destruir mesmo os velhos partidos, não irá, ao mesmo tempo, libertar votos para os extremos – a direita incomodada com o seu liberalismo cultural, a esquerda indignada com o seu liberalismo económico? Funcionarão então, na segunda volta das legislativas, os tradicionais cruzamentos de voto contra a Frente Nacional? A extrema-esquerda já se desligou da “disciplina republicana”: apesar das histerias anti-fascistas, recusou-se mesmo a votar no único candidato que podia derrotar Le Pen. Porque não poderão os soberanistas da direita imitar a extrema-esquerda? Macron é, neste momento, a esperança de Le Pen para emergir como a “primeira força de oposição”, congregando os “patriotas” da direita e da esquerda contra os “mundialistas” (como se diz em França).

A França é um dos países europeus onde os governos avançaram para a integração monetária, sem nunca serem capazes de fazer as reformas necessárias para a economia funcionar com uma moeda forte. Macron promete essas reformas. Mas só em Junho, com as eleições legislativas, veremos que apoio é que Macron poderá ou não ter no parlamento. Se os partidos tradicionais do regime ficarem em maioria, é quase certo que tentarão reduzir Macron a um mestre de cerimónias. Se ficarem em minoria, resistirão à tentação de explorar o anti-europeísmo? Nesse caso, mesmo não havendo Frexit, haverá provavelmente cada vez mais, da parte da França, aquele tipo de pressão que os governos ingleses sempre exerceram sobre a UE, em nome do euro-cepticismo doméstico.

O regime da V República em França começa a parecer-se com o seu antecessor, a IV República de 1946-1958: o mesmo tipo de oligarquia, incapaz de se decidir, perante uma população dividida e desconfiada. Em 1958, era preciso acabar com a inflação e com a guerra na Argélia. Disso, aliás, dependia a integração europeia. O general De Gaulle tomou o poder, fundou um novo regime, fez os trabalhos de Hércules, e viabilizou o eixo franco-alemão. Agora, não há inflação, mas há estagnação; e não há guerra na Argélia, mas em França. Nem tudo, porém, é igual. Para começar, já não existe o exército que em 1958 sustentou De Gaulle, nem, claro, um De Gaulle. Como vai desta vez a França sair do seu impasse? E a Europa? Pode esperar?

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