Lembro-me bastante bem quando Sá Carneiro morreu. Tinha sete anos. Os meus pais, que nunca se interessaram pela política, deixaram-se levar pelo discurso de Sá Carneiro. Havia bandeiras lá em casa, emblemas que prendíamos nas camisolas, autocolantes, e eu, que tinha a idade em que os miúdos começam a perceber estas coisas, sentia um certo frenesim no ar. Respirava-se esperança naquele Outono de 1980. Hoje, 39 anos passados julgo que era mais ansiedade. As pessoas que votavam na AD, que iam aos comícios ouvir Sá Carneiro, estavam ansiosas. Talvez sentissem que a cartada fosse demasiado alta; talvez pressentissem que algo ia correr mal. Talvez soubessem que iam perder as presidenciais ou pressagiassem alguma catástrofe que colocasse um ponto final na confiança que tinham. Talvez fosse tudo bom demais para ser verdade.
Sei a impressão que me causou tudo aquilo. É engraçado como a memória é selectiva. Lembro-me, assim como quem revê um conjunto de fotografias, imagens estáticas passadas em forma de slide, de estar na sala a ver televisão depois do jantar. Nessa noite o meu pai encontrava-se de serviço no banco de urgência de S. José e a minha irmã e eu estávamos sozinhos em casa com a nossa mãe. Acho que antes de entrar no avião Sá Carneiro deu uma conferência de imprensa que a televisão transmitiu. Já não me recordo. Lembro-me que passados uns instantes (eu já não estaria na sala) algo aconteceu e o ambiente em casa mudou. Vi a minha mãe vidrada no ecrã e ela passado pouco tempo pôs-me na cama. Nada disse e perante o silêncio, tenho esta imagem nítida na minha memória, perguntei-lhe o que tinha acontecido. Olhou para mim muito triste, era a imagem da decepção estampada no rosto, mas não me respondeu. Apenas um beijo e adormeci. No dia seguinte, no meio do ambiente que continuava pesado e porque insisti em saber o que se passava (estávamos no hall da entrada prontos a sair), a minha mãe baixou-se e segredou-me ao ouvido: o Sá Carneiro morreu.
Não deixa de ser impressionante como esta frase pode ser entendida por um rapaz de 7 anos. A forma como foi proferida pressupunha que também eu estava perfeitamente a par de quem era Sá Carneiro e sabia o que o seu desaparecimento significava para as nossas vidas. No caminho para a escola ao ver os cartazes da AD colados nas paredes, os três devidamente ordenados como sempre se encontravam: Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Ribeiro Telles, senti que aquela cartada estava terminada. Nada mais seria igual. Nesse fim-de-semana, em casa dos meus avós paternos nas Picoas, com toda a família reunida, avós, pais, tios e primos, no meio de uma algazarra em que todos falavam ao mesmo tempo que o funeral era transmitido pela televisão, alguém perguntou (o único som que naquela tarde me ficou gravado na memória): quem é que agora nos vai tirar disto? Ainda ninguém respondeu.
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