Há muitos, muitos anos fui almoçar com um amigo a um restaurante barato, para as bandas de Carnide. O empregado trouxe-nos a lista e houve uma coisa que nos chamou a atenção: a existência de um “Frango à Covan”. Como o restaurante não se chamava “Covan”, perguntamos-lhe como era o tal frango. “É um frango cozinhado com vinho”, esclareceu-nos. A luz fez-se nos nossos espíritos. Tudo se explica.

Não conto esta história para gozar com a ignorância alheia. Uma das dolorosas experiências da vida , felizmente cada vez mais rara, foi a de descobrir que muitas vezes me ri da suposta ignorância dos outros sem razão alguma, quando eu próprio era o ignorante. Sou um tipo sensível. A descoberta desse facto foi-me sempre tão desagradável, quase fisicamente desagradável, que me começou a inibir qualquer gozo no capítulo, mesmo quando inteiramente legítimo.

Resta a pergunta, perfeitamente interessante: como é que coq au vin se transforma em “covan”? Deixo de lado a questão da ignorância propriamente dita. Não é interessante. Mas há mais alguma coisa aqui. “Covan” é fácil, e a simplicidade compensa, numa certa medida, a ausência de sentido. Desse ponto de vista, “Frango à Covan” é óptimo. É eficaz. É impossível errar ao pronunciar a expressão, e o risco indelicado do “cócóvim” encontra-se definitivamente arredado.

Algo de semelhante a este processo se passa com o mundo das ideias. As ideias complexas são muitas vezes espontaneamente traduzidas em covanês para terem sucesso e serem mais facilmente assimiladas pelos mais obtusos cérebros, podendo deste modo circular mediaticamente a uma maior velocidade. A necessidade de acreditar gera uma desesperada procura de covanês e tal procura, por razões que a economia das ideias explica, origina uma robusta oferta de produtos destinados a satisfazerem a necessidade pública.

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Por razões que não vou aqui analisar, a ecologia é um dos campos em que o covanês mais progride. E progride do modo mais rápido, com as mais delirantes consequências. Basta pensar no modo como, praticamente de um dia para o outro, a expressão “emergência climática”, símbolo maior do covanês contemporâneo, tomou conta da conversa corrente e, à pala disso, as pobres das vacas foram, entre outras coisas, declaradas inimigas juradas do saber pela Universidade de Coimbra.

Seria preciso o génio de Cole Porter para dar uma ideia, mesmo que ténue, da variedade de pessoas que falam covanês. António Guterres, nas Nações Unidas, fá-lo. O Santo Padre fá-lo. A jovem Greta, no Oceano, fá-lo. Cientistas políticos fazem-no. Artistas aos bandos fazem-no. E cantam: vamos fazê-lo, vamos cantar a emergência. Fernando Alves, na TSF, fá-lo. Donas de casa sentimentais fazem-no. As mais selectas escolas fazem-no. Universitários educados fazem-no. Sociólogos prevenidos fazem-no. E cantam: vamos fazê-lo, vamos cantar a emergência. Catarina e Mariana fazem-no. Marcelo, o Presidente, fá-lo. Heloísa Apolónia fá-lo. O homem do PAN, de olhos fechados, fá-lo. Até Costa e Rio, quando precisam, o fazem. E cantam a letra toda, como os pequineses do Ritz.

A diferença para com Cole Porter, é claro, é que ele falava do que sabia e do que a humanidade sabia, ao passo que os adeptos do covanês contemporâneo, exactamente por este ser uma tradução selvagem de um problema complexo, não sabem, regra geral, do que estão a falar. Nem isso, de resto, é muito importante. O “Frango à Covan” tinha um objecto real, mas o seu nome nada significava. A sua função não era essa. Era soar de uma forma simples. No mundo das ideias, “emergência climática” é um seu perfeito análogo. A mesma ausência de sentido convivendo com um objecto real, o problema da saúde do nosso planeta. E, no seu sem-sentido, impedindo uma verdadeira atenção ao problema. É algo que acontece muitas vezes, nos mais diversos domínios: a gritaria insana vela o objecto que aparentemente a despertou.

Uns parágrafos acima escrevi que não analisaria as razões pelas quais os temas ecológicos são tão permeáveis ao covanês. Há um, no entanto, que não resisto a sublinhar. Para uma vasta parte da humanidade ocidental, nada há de mais apetecível do que um certo sentimento de culpa própria. Por estranho que pareça, esse sentimento comporta um notório benefício narcísico. Porque nos vemos a nós próprios como agentes, seres dotados de actividade, e o resto – a natureza, por exemplo – como pura passividade. Sentirmo-nos culpados é uma forma de nos sentirmos superiores, com a vantagem acrescida de podermos mostrar a nossa elevação manifestando o nosso desejo de abdicarmos dessa mesma superioridade. Se necessário, questionando, como em certos círculos académicos se tornou corrente fazer, o nosso direito a habitarmos o planeta. Que a “natureza” seja tudo menos passiva, algo que é óbvio, não pode caber nesta configuração mental. E supor que, saindo dessa passividade essencial sem verdadeiramente dela sair, ela se “zanga” connosco, como pretende, com a habitual retórica infantil, Guterres, é antropomorfizar tudo, confirmando o que disse antes. De facto, no fundo, a natureza não interessa.