Disse um militar afegão quando as tropas americanas abandonaram Bagram:

Pela maneira como saíram, sem dizer nada aos soldados afegãos que cá fora patrulhavam a área, perderam, numa noite, toda a simpatia que ganharam em 20 anos.

Ata Mohammad Noor, um senhor da guerra, aliado dos Americanos, governador da província de Balkh entre 2004 e 2018, disse essencialmente o mesmo.

Desde que, em Abril, o presidente Biden anunciou a conclusão da retirada do contingente americano para o fim de Agosto, o progresso no terreno dos Talibã foi rápido, mesmo nas regiões do Norte do país, que tradicionalmente lhes são hostis.

Uma cruzada malparada

Nunca tive grande entusiasmo pela operação Afeganistão: o empenho de dezenas de milhares de tropas americanas e da NATO para fazer de um Estado tribal de senhores da guerra “uma democracia”. Uma das várias operações dos neoconservadores americanos, que escaqueiraram o Médio Oriente há 20 anos.

O Afeganistão foi uma guerra decidida por interesses e conexões políticas várias. A operação compreendia-se como represália aos Talibã, que acolhiam a Al Qaeda; mas uma vez expulsos os Talibã de Cabul, havia que devolver o país aos senhores da guerra.

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Os neoconservadores norte-americanos não perceberam, ou fizeram de conta que não percebiam, que para haver uma democracia minimamente funcional era preciso haver primeiro nação e depois sociedade civil. Nação, para que houvesse um denominador comum identitário; sociedade civil, para que houvesse vida – religiosa, económica, social – independente da autoridade do poder político.

Nada disso existia no Afeganistão, nem na maior parte das áreas médio-orientais que a cruzada neoconservadora avassalou, deixando países, como o Iraque e a Líbia, desfeitos e entregues à guerra civil.

Não havia razão de Estado ou de interesse nacional (ou imperial) que justificasse esta guerra, mas estas “guerras perdidas” acabam sempre por nos agarrar – as que estão perdidas à partida, as que estão ganhas mas que se perdem e as que se eternizam na corda bamba. Lembro-me do desgosto que tive, aos 8 anos, com a queda de Dien Bien Phu, em Maio de 1954. Lembro-me da Argélia e do Vietname. E das nossas guerras de África.

E a nostalgia não escolhe lados ou ideologias. Uma vez, perguntei a um embaixador de um país da antiga URSS, que então estivera, pelo GRU (os Serviços de Inteligência Militar soviéticos), em Angola e Moçambique, se tinha saudades do Império. Do Império Soviético, claro. Confessou-me, com ar nostálgico, que sim, que tinha.

E estas guerras longínquas e longas e por isso quase sempre perdidas – as “guerras distantes” que George F. Kennan criticava, guerras como a do Vietname – acabam por convidar à romantização póstuma, até pela dureza e estranheza do mundo visto e dos extremos vividos.

Ficções do Afeganistão

O Afeganistão não é um Vietname, mas não deixou de ter, também, os seus filmes, a sua épica. E entre muito filme B, há alguns mais A que B. Osama (2003) é a história de uma rapariga que vive numa área dominada pelos Talibã. Sem pai e com uma mãe que, pelas regras dos fundamentalistas, não pode trabalhar, tem de passar por rapaz para sobreviver, vestindo-se, comportando-se e agindo como se fosse um homem: uma “Orlando” por um engenho aguçado pela necessidade. E outros: da comédia dramática Charlie Wilson’s War ao extraordinário Zero Dark Thirty, de Kathryn Bigelow, com Jessica Chastain como protagonista da perseguição a Bin Laden e da operação Lança de Neptuno, da CIA e dos Navy Seals, que o matou no Paquistão.

Há ainda outros filmes de guerra passados ou centrados no Afeganistão que recordo: Lions and Lambs, de 2007, com Robert Redford, Meryl Streep e Tom Cruise, mas com um discurso pretensioso e moralista; e Lone Survivor, de 2013, e Korengal, de 2014, que retratam bem o lado operacional da guerra.

Bagram

A operação Lança de Neptuno, que liquidou Bin Laden, foi lançada a partir de Jalalabad, mas o ponto de início da operação foi Bagram. Bagram era uma grande base, a 1500 metros de altitude, 50 quilómetros a norte de Cabul, construída em 1950. Serviu os Russos nos anos 80 e foi, desde 2006, o grande centro operacional das tropas americanas e da NATO.

No Afeganistão morreram pouco mais de 4 mil americanos, entre militares e civis contratados, e 21 mil ficaram feridos. Os últimos presidentes americanos – George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump – visitaram Bagram e ali fizeram discursos optimistas sobre a vitória final.

Agora, chegou ao fim outra das longas guerras da América. Perdida como a do Vietname. No Vietname, as imagens da retirada americana – o tecto da embaixada e os milhares de “colaboradores” locais, tentando escapar – ainda nos estão na memória, mesmo com a vitória na Guerra Fria. Ali, os comunistas ganharam e instalaram um regime de terror. Dois milhões e meio de sul-vietnamitas fugiram nos anos seguintes.

O Afeganistão é um cemitério de impérios: Eça de Queirós tem sobre os Ingleses no Afeganistão e sobre a derrota que aqueles nómadas tribais e valentes infligiram aos Ingleses páginas admiráveis. Que são também sobre a repetida tentativa de impor outros regimes e sistemas em terras estranhas, através da substituição de um qualquer “velho emir” por um outro “de raça mais submissa”, ou seja, de raça mais consentânea com a “ideologia invasora” e mais permeável ao controlo do “invasor”.

Eça diz-nos que foi assim, com os Ingleses em 1847 e que voltou a ser assim em 1880. Podemos dizer que também assim foi no século XX e no século XXI e que, muito provavelmente, assim será nas futuras tentativas de impor às “tribos do deserto” velhos e novos “direitos humanos” e velhos e novos modelos democráticos. Mas vale a pena ler Eça:

“Em 1847, os Ingleses – «por uma razão de estado, uma necessidade de fronteiras científicas, a segurança do império, uma barreira ao domínio russo da Ásia…» e outras coisas vagas que os políticos da Índia rosnam sombriamente retorcendo os bigodes – invadem o Afeganistão, e aí vão aniquilando tribos seculares, desmantelando vilas, assolando searas e vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; e logo que os correspondentes dos jornais têm telegrafado a vitória, o exército, acampado à beira dos arroios e nos vergéis de Cabul, desaperta o correame e fuma o cachimbo da paz… Assim é exactamente em 1880.”

A debandada

Agora, a saída americana vem confirmar as lições amargas recebidas pelos dois impérios do Grande Jogo do século XIX: o russo e o inglês.

Talvez mais chocante que o tempo seja o modo desta retirada: a saída nocturna de Bagram, clandestina, sem aviso aos aliados, deixando ao abandono centenas de viaturas e toneladas de munições e abastecimentos, que, durante algumas horas, foram objecto de saque por bandos de marginais. Indigna para a América até pelas principais vítimas colaterais: as tropas de Cabul. O contraste da retirada ordeira dos Russos, em 1988, deixando um governo em Cabul, com a presente retirada americana, foi agora lembrado pela imprensa russa.

Moscovo sabe que o Afeganistão foi o Vietname da URSS e tem algumas preocupações quanto aos Talibã, já que o Afeganistão faz fronteira com vários Estados da antiga Ásia Central soviética. E os Russos continuam a designar os Talibã como terroristas, não esquecendo que há 20 anos apoiavam os rebeldes Chechenos. De qualquer forma, os Talibã enviaram uma missão a Moscovo para sossegar os Russos quanto às suas intenções: não hostilizarão o Tajiquistão nem irão permitir que o Estado Islâmico do Iraque e do Levante se estabeleça em território afegão.

Nos anos oitenta, o protegido da URSS era Mohammad Najibullah. Deixaram-no no poder em 1988-89, quando retiraram, e Najibullah ainda sobreviveu cerca de três anos. Antes de ser presidente e na boa tradição comunista, Najibullah fora chefe da Polícia Secreta Afegã e ministro da Segurança. E parece que terá actuado com a competência e zelo socialistas contra os opositores, juntando a tradição KGB à cultura afegã… Não devia ser agradável cair nas suas mãos.

Com o fim do regime comunista, Najibullah refugiou-se nas instalações das Nações Unidas. Mas não conseguiu escapar para o estrangeiro e foi capturado na noite de 26 de Setembro de 1996 pelos Talibã, que não foram carinhosos com o ex-carrasco – que terão torturado, castrado e executado. Depois de morto, arrastaram o seu cadáver pelas ruas de Cabul e penduraram-no num candeeiro junto ao Palácio Presidencial de Arg.

De Budapeste a Cabul

São estes Talibã que podem estar de volta a Cabul. Já disseram que não querem negociar com ninguém e tudo indica que vão impor a Sharia. As leis da actual República Islâmica do Afeganistão continuam a penalizar a homossexualidade e todos os comportamentos sexuais “desviantes”. E, dada a experiência passada, é de esperar uma aplicação ainda mais escrupulosa e zelosa da lei, quem sabe com pena de morte, como sucede no Irão, na Arábia Saudita, no Sudão, no Brunei e no Iémen.

E pior: caso os Talibã cheguem ao poder, a educação e o trabalho das mulheres, os seus mais pequenos gestos e atitudes de liberdade e “ocidentalidade”, da profissão ao vestuário, vão ficar sob a tutela violenta e repressiva do fundamentalismo radical.

Talvez o Parlamento Europeu, as Nações Unidas e a esquerda liberal e radical americana, entretidos ora com a “homofobia” húngara, ora com a verdura do planeta, ora com as oscilações do clima, pudessem reservar algum tempo e cuidado ao Afeganistão.