Penso muitas vezes quem teria sido a primeira alma a invocar o termo “Novo Artesão”? Deixa, não passa de uma pergunta retórica. Não tenho qualquer intenção (ou interesse) em dar resposta a esta questão. No entanto, há muito que queria refletir sobre o uso deste mesmo termo nos dias de hoje. Assim, façoo agora, pela lente da artesã que sou.

O conceito do “Novo artesanato” tem encontrado um lugar cativo em vários palcos, seja em imprensa, redes sociais e até academia. Encontrase associado a uma amálgama de definições e, por norma, referese a um grupo de profissionais que executa de forma artesanal os mais variados trabalhos, que é também o grupo dos novos tempos do artesanato, os salvadores do mesmo, aqueles que usam técnicas antigas, mas com ideias novas, que serão a continuidade de um setor em franco declínio, etc., etc. Basicamente, se não fossem os novos artesãos, amanhã já não havia ninguém a saber fazer um cântaro de barro na roda de oleiro. Brincadeiras à parte, a utilização do adjetivo “novo” pressupõe naturalmente a existência do seu oposto, o velho que, apesar da omissão do termo propriamente dito na maioria das comunicações, ele existe lá, de forma implícita.

Embora se leia assim tantas vezes, é errado pensar que esta é uma designação que faz distinção entre gerações, o que me leva a concluir que quem classifica o trabalho de artesãos com mais idade como velho artesanato, não tem conhecimento real do setor. Desconhece, por exemplo, que o mesmo tipo de artesanato é também praticado por gerações atuais, por gente jovem que traz para as suas bancadas de trabalho exatamente as mesmas práticas que os seus pares de mais idade traziam, e o fazem com muito amor e orgulho. Então quem são estes artesãos? São novos, são velhos? Andam ali no limbo temporal do artesanato? Acaba por ser também uma designação falaciosa, já que tem data de expiração marcada desde o seu aparecimento. Ora, e a próxima geração, aqueles que trarão, mais uma vez, os elementos dos seus tempos, para a sua prática artesanal como aliás sempre se fez como chamaremos a estes artesãos? Os ainda mais novos artesãos”? E quando chegarmos a essa altura, o que acontecerá aos que tinham sido apelidados “Novos Artesãos” na geração anterior? Esta é a razão pela qual temos “Médicos” e não “Velhos médicos” e “Novos Médicos”, que é também a mesma razão pela qual temos “Arquitetos” e não “Velhos Arquitetos” e “Novos Arquitetos”. Podia continuar aqui para sempre…

O artesanato é, talvez, um dos setores que melhor espelha o seu contexto sociocultural, e que melhor reflete as características das gentes, dos saberes e do uso quotidiano de objetos no seu tempo. Vejase em qualquer museu de história, antropologia ou etnografia, a presença, e importância, do objeto artesanal, como exímio contador de histórias. É o objeto produzido pelo artesão que nos permite saber, por exemplo, como se vestiam as rainhas, como se servia uma mesa na época romana, como se bebia chá no Japão do século XII, como se combatiam batalhas desde a Idade do Bronze até à Idade Média. Observa os objetos que te rodeiam, a roupa que tens vestida, o calçado que escolheste quando saíste de casa esta manhã. É o suficiente para perceberes que não há como fugir à herança do artesanato.

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O artesanato está muito longe de ser um conceito abstrato, tem enquadramento legal e fiscal bem definido. Em Diário da República, diz nos o DecretoLei nº 110/2002, de 16 de abril, que a atividade artesanal é “a actividade económica, de reconhecido valor cultural e social, que assenta na produção, restauro ou reparação de bens de valor artístico ou utilitário, de raiz tradicional ou contemporânea, e na prestação de serviços de igual natureza, bem como na produção e preparação de bens alimentares.

A evolução do artesanato existe, portanto, como uma consequência natural da evolução do que o rodeia. Sendo assim perfeitamente previsível que sejam introduzidas ferramentas e tecnologias nos seus processos produtivos, assim como natural é que os seus protagonistas exibam agora características distintas daquelas que invariavelmente definiam os artesãos do século passado.

A título de exemplo, se outrora o artesanato estava associado a qualificações académicas modestas, hoje é comum encontrar artesãos com formação académica superior, e que, ao invés de dar continuidade a um ofício que estava na família há gerações, escolhe o caminho do artesanato por gosto, paixão ou afinidade. Muitas vezes, chega mesmo a fazer uma transição de carreiras profissionais dos mais variados setores para o artesanato. A par de tudo isto, tem existido também uma deslocação geográfica da prática do artesanato, de um contexto rural, para outro mais urbano.

Será isto suficiente para falarmos de novos artesãos?

Por vezes questionome se deveria sentirme privilegiada por ser dada à minha profissão este destaque todo? Não me parece. O que eu gostava mesmo era de discutir Artesanato. Não o velho, não o novo, mas o artesanato, que, independentemente da sua dimensão temporal, atravessa desafios reais, que te vão afetar, quer te enquadres no lado do novo, ou no lado do velho signifique isso o que significar. Optar por assimilar um termo que pouco mais é que uma estratégia de rebranding de marca, é contribuir para perpetuar a segmentação de um setor que já por si é excessivamente fragmentado.

Novo artesão é uma designação que serve sobretudo o propósito de elevar o prestígio social de ofícios, e de formas do saber fazer, que embora sejam de nobreza indiscutível, têm sido conotados como sinónimo de pobreza e vida dura. É uma construção social, alimentada por profissionais que se posicionam no artesanato como meros espetadores. E talvez seja essa a posição que os impede de compreender o impacto negativo que este tipo de abordagem elitista tem no setor. O fomento de uma separação artificial entre gerações, ao invés da sua unificação, não contribui em nada para a criação de políticas que venham a beneficiar o setor como um todo.

O que somos é  artesãos, todos, e que bom seria se falássemos a uma só voz.

Tu és artesão. Não és novo, não és velho, és Artesão.

Dilo com orgulho.