1 Eu sei. Ainda faltam quatro anos para as eleições presidenciais, logo é muito extemporâneo falar sobre candidatos à sucessão de Marcelo. Certo é, contudo, que os interessados começam a posicionar-se. E há um nome que chama cada vez mais a atenção, ao ponto de uma sondagem da Intercampus, conhecida na última 6.ª feira, lhe dar uma vitória garantida nas presidenciais de 2026: o almirante Henrique Gouveia e Melo.

O próprio até vai alimentando a proto-candidatura ao lançar um “depois logo se vê” em entrevista ao Observador.

É importante refletirmos sobre o que representaria voltarmos a ter um militar como Chefe de Estado. Não só pela importância histórica que as Forças Armadas sempre tiveram na definição do nosso futuro político, como também pela perceção que poderia vir a ser construída na União Europeia sobre a nossa democracia.

2 Não há dúvida de que os resultados do inquérito de opinião traduzem o sucesso do trabalho de coordenação de Gouveia e Melo no processo de vacinação contra a Covid-19. Os portugueses estão-lhe reconhecidos e analisam de forma claramente positiva a sua capacidade de liderança. O que eu subscrevo.

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Por isso mesmo é que o poder político, e bem, procurou premiar Gouveia e Melo não só com a promoção a almirante mas também com o cargo de Chefe de Estado Maior da Armada. Refira-se que a pressa foi tanta que o antecessor de Gouveia e Melo, António Mendes Calado, quase que foi escorraçado do cargo.

Dito isto, saltar do sucesso do processo de vacinação ou até de uma espetacular e fantástica reorganização da Armada durante o seu mandato de chefe do ramo para uma candidatura presidencial é um passo gigantesco que não posso acompanhar por várias razões.

3 Em primeiro lugar, porque traduz uma das nossas matrizes culturais mais nefastas: o sebastianismo. Estamos sempre à procura de um anjo salvador, de alguém que desça à terra e que ponha ordem na choldra e nos políticos. E Gouveia e Melo até parece o Pai Natal da Coca-Cola com o seu cabelo, barba e farda branca e olhos azuis.

Não pretendo obviamente colocar em causa os pergaminhos democráticos do almirante — que são à prova de bala — mas foi esse sentimento de atração por uma ‘voz de comando’ que esteve na origem da criação do Estado Novo e do que viria a ser a ditadura salazarista que durou 48 anos.

Repito: tenho a certeza que Gouveia e Melo não se identifica com esse sentimento sebastianista. Contudo, não podemos esquecer as lições da história. E a origem do Estado Novo reside precisamente na necessidade de procurar um salvador para por fim à desordem política, económica e social da I República.

Continuando os ensinamentos da história, temos de recordar igualmente o mandato do último militar que ocupou o Palácio de Belém: general Ramalho Eanes.

É certo que foi durante um período histórico muito concreto — o pós Processo Revolucionário em Curso e os primeiros anos da democracia portuguesa — mas não é menos rigoroso constatar que, após devolverem a liberdade ao povo, as forças armadas foram um obstáculo no desenvolvimento da democracia.

Tendo sido o primeiro Chefe de Estado eleito democraticamente com voto universal e secreto em 1976, Eanes tem hoje uma excelente imagem mas não podemos esquecer que o eanismo foi uma corrente política que tentou impedir a evolução da democracia portuguesa para um sistema ocidental em que os militares estão submetidos ao poder político que emana do voto dos cidadãos.

Por isso mesmo, Eanes foi um opositor feroz de Mário Soares, Francisco Sá Carneiro e Francisco Pinto de Balsemão e de todos os que lutaram pela revisão constitucional de 1982 que veio a eliminar toda e qualquer espécie de tutela das forças armadas sobre a democracia portuguesa, como aquela que era personificada pelo Conselho da Revolução.

4Ao recordar o eanismo, que ainda deu lugar ao Partido Renovador Democrático que teve curta duração, estou a chamar a atenção para os perigos que poderão ‘estar em cima da mesa’ com a hipótese de Gouveia e Melo.

Outra questão reside em saber o que poderia representar uma possível candidatura do almirante. Como se iria posicional em termos ideológicos e de combate político? E que tipo de eleitorado poderia conquistar?

Aqui faltam ainda muitos dados mas parece claro de que Gouveia e Melo seria aquele tipo de candidato que, tal como Marcelo, se iria posicionar-se ao centro. Contudo, e ao contrário do atual PR, iria atrair muitos descontentes, da esquerda à direita, do norte ao sul. E provavelmente muitos abstencionistas.

Uma candidatura de Gouveia e Melo, e atendendo precisamente o seu perfil e caminho desenvolvido, só poderá fazer sentido se tentar corporizar uma espécie de regeneração do sistema político português. Será sempre o outsider, o não político, que tentar colocar o país na linha com sua ‘voz de comando’.

E, nesse sentido, o eleitorado de uma candidatura de Gouveia e Melo teria sempre muitos pontos em comum com o eleitorado do Chega — que é mais um voto de protesto do que um voto consciente.

5 É verdade que a classe política só dá razões para uma insatisfação crescente dos portugueses. Uma economia que perde competitividade face às suas congéneres europeia face ao receio de realizar reformas estruturais, hospitais que não funcionam, má qualidade das escolas e dos serviços administrativos no Estado e uma segurança social falida sem que ninguém diga que o ‘rei vai nú’ — tudo isto são factos que levam muitos portugueses à abstenção.

É igualmente verdade que o combate à corrupção, por exemplo, poderia ser muito mais efetivo e assertivo em termos de prevenção geral.

Chegados aqui, temos que perguntar: que curriculum vitae e conhecimentos tem Gouveia e Melo para tentar resolver os problemas acima elencados? Ou que moral têm os militares, por exemplo, para oferecer no combate ao corrupção? É que nem todas as Forças Armadas são um modelo de organização e eficiência, nem têm grande moral para falar em combate à corrupção quando são vários os processos de criminalidade económico-financeira relevantes que têm assolado os quartéis nos últimos anos.

Acresce a tudo isto que Gouveia e Melo é um executivo — perfil que não é compatível com o cargo de Chefe de Estado. O Presidente da República é um árbitro, alguém que deve tentar promover consensos mas que não governa.

Tendo em conta o seu perfil, Gouveia e Melo ainda tentaria pegar na bola e marcar golos.

“Nós somos militares, obedecemos ao poder político e é assim que deve ser”, disse o almirante na entrevista ao Observador.

Esperemos que esta frase ainda valha alguma coisa quando terminar o seu mandato como Chefe de Estado Maior da Armada. O país agradece que evite um regresso ao passado.