É inevitável que, no seguimento da reportagem do Público sobre o mau estado dos museus nacionais, chovam críticas à Ministra da Cultura por, em vez de estar a resolver problemas graves e urgentes do sector, empenhar-se em ameaçar uma estilista americana por causa da camisola poveira. Há quem vá dizer que Graça Fonseca se borrifa na colecção do Museu Nacional de Arte Antiga para se preocupar antes com a colecção Outono/Inverno da Tory Burch. Ou quem, rebuscada e acintosamente, considere que é normal que a estilista tenha confundido uma camisola portuguesa com uma mexicana, já que os nossos museus começam a parecer ruínas aztecas. Uma crítica que não faz muito sentido, enfim. Mas já se sabe que, quando querem dizer mal, as pessoas pegam em qualquer coisa.

Como disse, a crítica é inevitável. Mas é, também, injusta. Ao emitir um comunicado em que ameaça a designer com o tribunal, Graça Fonseca não está apenas a mandar um mail e a publicitá-lo nas redes sociais para fingir que se esforça na protecção do património cultural português enquanto os museus caem aos bocados. Nada disso. Graça Fonseca está, com essa acção, a promover, ela própria, uma tradição muito nossa, que importa preservar. Trata-se do costume profissional, tão português, que consiste em efectuar uma pequena tarefa que não custa nada, mas que gera máxima publicidade, em vez de se dedicar a trabalhos imprescindíveis, porém laboriosos e sem resultados instantâneos que se divulguem imediatamente. Apregoar nas redes sociais com grande aparato, mas efeito nulo? Sim, senhor! Resolver problemas reais, dos que afectam pessoas? Não mace, senhor!

Vê-se que Graça Fonseca é especialista desta tradição. A forma como promove o seu gesto é irrepreensível. Reza o comunicado: “A Ministra da Cultura, Graça Fonseca, tomou a iniciativa de solicitar a identificação das vias judiciais e extrajudiciais ao dispor do Estado.” Não foram “os Serviços do Ministério da Cultura” ou o ainda mais genérico “o Governo”. Nada disso. Foi “a Ministra da Cultura, Graça Fonseca”. Assim mesmo, duas vezes, para ninguém ter dúvidas de quem lidera este combate contra a modista abusadora: é “a Ministra da Cultura” e é “Graça Fonseca”. Que, note-se bem, não se limitou a solicitar a identificação das vias tal e tal. Não, não! A ministra “tomou a iniciativa de solicitar”. Para quê relatar uma acção, quando se podem anunciar duas? Graça Fonseca fez um brilharete sem dedicar muito tempo ao assunto. Provavelmente, não precisou de tirar mais do que cinco minutos aos drinks de fim de tarde. Não perdeu mais que meio mojito.

É uma coincidência feliz isto ter acontecido no Dia do Teatro, pois trata-se de uma grande performance da Ministra da Cultura, além de uma aula de representação aos actores portugueses. Se alguns se perguntam porque é que não receberam apoios sociais, talvez esteja aqui a resposta. Espero que Graça Fonseca candidate esta prática a Património Cultural Imaterial da Humanidade. Se a candidatura for apenas preencher um formulário online, cuido que até já tenha sido apresentada.

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Neste caso específico, é património imaterial posto ao serviço de tentar arrecadar património material. Ao prometer fazer “o que estiver ao seu alcance para que quem já reconheceu publicamente o seu erro não se demita das suas responsabilidades e corrija a injustiça cometida, compensando a comunidade poveira”, Graça Fonseca observa outra tradição, desta feita universal. É o costume, transversal a todos os povos, que consiste em acusar um estrangeiro de ter praticado uma ofensa gravíssima para aproveitar o seu sentimento de culpa e sacar-lhe dinheiro. É como quando um turista tem o azar de bater no carro de um nativo. Aparece logo a família toda, já com muletas e cabeças enfaixadas, a exigir o arranjo do carro, o arranjo de outros carros do agregado, mais motas, bicicletas e carrinhos de mão que haja por perto, assim como cuidados de saúde para todos, tenham estado no acidente ou não, incluindo óculos novos e aparelhos dentários. É o que estamos a tentar fazer com a costureira americana. Não basta o pedido de desculpas e a emenda da descrição no site. Vai ter de pagar. Já tem a nossa camisola, vamos também enfiar-lhe o barrete.

Na minha opinião, o comunicado tem apenas uma falha. A queixa de apropriação cultural é, em si mesma, apropriação cultural do conceito americano de apropriação cultural. A ministra podia reconhecer isto. Bastava um breve parágrafo no seu Twitter: “Peço desculpa por, ao redigir o comunicado, não ter tido o cuidado de referir que este tipo de queixume é inspirado numa lamúria típica dos Estados Unidos da América”. Ficava-lhe bem. Por outro lado, podia metê-la em trabalhos e já se percebeu que isso é que Graça Fonseca não quer.

Entretanto, se os directores dos museus nacionais estão assim tão preocupados com o estado das instalações e da conservação das obras de arte, têm bom remédio. Peçam à Tory Burch para pôr à venda umas t-shirts com os Painéis de São Vicente ou uns brincos inspirados na Custódia de Belém. Se houver algazarra suficiente nas redes sociais, a ministra resolve o problema. Melhor: toma a iniciativa de solicitar que se principie a resolução do problema. Assim é que é.