Aos primeiros tiros sobre a baía do Lobito, os amigos da nossa família prepararam-se para abandonar o país. A minha irmã e eu fomos enviadas para a metrópole acompanhadas pela minha avó. E sabíamos, apesar de sermos crianças, que o nosso tio estava preso, e viria a ser torturado, por uma coisa vaga que não entendíamos, por pertencer a qualquer coisa a que jamais pertencera.

A vida construída pela minha mãe ao longo dos anos, assente na família e nos amigos, no trabalho de que gostava e na enorme paixão por Angola, colapsava. O regresso foi decidido e organizado em dois dias. Não era o que a minha mãe queria, afinal, era angolana. Angola era o seu país. A terra onde nascera, crescera, casara, tivera os seus filhos e onde desejava viver o resto da sua vida. Foi aconselhada por um amigo com ligações ao MPLA a sair. A sua segurança não estava garantida, estava-se em guerra, em tumulto político, e o seu irmão acabara de ser preso. Os militares andavam por todo o lado, as armas disparavam, umas vezes de propósito, outras porque sim, outras por azar. Na maior parte dos dias, o azar matava mais do que a intenção.

Os meus pais, para nos salvaguardarem, enviaram-nos primeiro. A minha mãe viria meses depois. O meu pai só depois de resgatar o meu tio.  Se resgatasse. Quando resgatasse: a ausência não é só o espaço vazio, é uma enorme interrogação.

Há no mundo lugares inóspitos. Inhospitus: sem hospitalidade. Não acolhem. Não recebem. Inabitáveis. Porque o são, porque se tornaram, ou porque se fazem. Quando Angola se tornou para nós um lugar inóspito, saímos. E tivemos a sorte de conseguir fazê-lo em segurança. O meu tio também.

Na praia de Tarajal, uma voluntária da Cruz vermelha, Luna Reyes, recebeu nos braços um senegalês que terá deixado para trás os companheiros que morreram pelo caminho e todos os que não conseguiu resgatar à miséria de um país que ainda não se fez habitável para os seus. Os pobres sempre foram munições de guerra e continuam a sê-lo ainda que numa guerra diplomática: a União Europeia entende que o Sara Ocidental está pendente de descolonização. Marrocos, com o aval calamitoso de Trump, entende que o Sara Ocidental é território seu. Espanha acolheu para tratamento hospitalar o homem que insiste em disputar com o governo marroquino aquele território. Marrocos como retaliação, despejou sobre a praia pessoas como se fossem lixo que, como lixo, Espanha varreu aos milhares. Esta é uma história de inospitabilidade.

Talvez aquele homem que Luna Reyes soube acolher, tenha amado o país onde nasceu e cresceu. Talvez, se tivesse escolha, escolhesse viver, trabalhar, amar e morrer no seu país. Como ele, talvez todos nós. O problema não são os migrantes. O problema é a pobreza.

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