1 Nestes tempos duros, dolorosos, difíceis, os católicos não devemos esquecer de onde somos. Nunca. Em momento algum. Por mais duros que sejam os momentos. Sobretudo quando são mais duros. E, se alguma vez o negarmos ou alguma vez enxotarmos pertença ou responsabilidades, devemos fazer como Pedro depois de o galo ter cantado três vezes: cair em nós. Sim, nós somos daqui. Sim, nós não viramos a cara. Sim, nós estamos cá.

Não quero faltar com o testemunho da minha gratidão. Quando os responsáveis pelo governo da Igreja em Portugal são chamados, com humildade, discernimento e coragem, a prosseguir o virar de página no tema dos abusos sexuais na Igreja, não posso faltar. Quero agradecer-lhes a fortaleza com que encetaram o caminho da Comissão Independente e confiaram nos efeitos dos seus resultados. Quero agradecer o ânimo e a serenidade com que acompanharam esta etapa.

O que conheço da Igreja, desde que tenho conhecimento, é estar sempre presente nos bons e nos maus momentos. Sempre junto de quem lhe pede, seja qual for a sua condição e necessidade. Ou mesmo junto de quem não pediu, mas é imperativo socorrer e arrancar da solidão extrema ou do abismo. Sempre presente, a levar a alegria e a esperança de Deus, com a palavra de Cristo: “ama a Deus, acima de todas as coisas, e ao próximo como a ti mesmo”. Tão simples. Tão difícil. Tão necessário.

Eu não conheceria Jesus Cristo, se não fosse a Igreja. Obrigado, muito obrigado. Agradeço a Maria. Agradeço o Presépio. Agradeço o Menino Jesus. Agradeço o Natal, a Semana Santa e a Páscoa, a Páscoa que explica tudo. Agradeço Pentecostes e o Espírito Santo. Agradeço a festa de Todos-os-Santos. Agradeço à Igreja a catequese e os primeiros sacramentos. Agradeço a formação juvenil. Agradeço os sacramentos, que alimentam ao longo da vida. Agradeço a oração. Agradeço o perdão. Agradeço a Avé Maria e o Pai Nosso. Agradeço o fio da vida. Agradeço como recebeu os meus mortos: os meus avós, os meus tios, a minha mãe, o meu pai, os meus sogros, os meus cunhados, o meu irmão e meus grandes amigos. Agradeço como me acompanhou e a eles, um por um; como me conforta com a certeza de que seguem na vida eterna e a esperança de que eu lá poderei juntar-me. Agradeço como acompanha o meu casamento. Agradeço como acompanhou a educação dos meus filhos. Agradeço como acompanha a dos meus netos. Agradeço estar sempre lá.

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Agradeço à Igreja ter ajudado a fazer o meu país, Portugal. Desde o primeiro dia, desde antes ainda dos primeiros dias. Agradeço os sentimentos e os valores de bem, amor e justiça da nossa cultura portuguesa. Agradeço as igrejas, mosteiros e catedrais, os cruzeiros, oratórios e ermidas, que povoam a nossa paisagem humana. Agradeço a música sacra portuguesa. Agradeço os belíssimos cânticos da nossa cultura popular religiosa. Agradeço Fátima. Agradeço a fé e a cultura cristã do meu povo. Agradeço os santos portugueses desde o primeiro, São Teotónio, aos pastorinhos de Fátima, passando por São Nuno de Santa Maria e Santa Isabel, Rainha.

Agradeço as dezenas de sacerdotes com que me cruzei, uns de palavra fulgurante, outros de risonho sentido de humor, todos bons pastores, referência de acolhimento. Agradeço os religiosos e religiosas. Agradeço cada uma das Congregações. Agradeço a obra missionária, desde há séculos e ainda hoje. Agradeço os que estão perto e os que vão para longe, para os confins da Amazónia ou para Cabo Delgado, com risco da própria vida. Agradeço a dádiva de si mesmos. Agradeço tantos movimentos. Agradeço as Misericórdias, marca social secular, muito antes dos liberalismos e dos socialismos. Agradeço a Caritas. Agradeço a inumerável obra social desde as paróquias às estruturas de maior dimensão. Agradeço o socorro social quotidiano, transferindo espontaneamente de quem tem para quem não tem. Agradeço o amparo aos velhos sós, às famílias em dificuldades, às crianças abandonadas, aos incapacitados, aos deficientes profundos e suas famílias. Agradeço o socorro humano próximo dos doentes e carenciados, aos que têm fome, aos sem-abrigo, aos alcoólicos, aos toxicodependentes, aos doentes mentais, aos que se confrontam com a morte a chegar. Agradeço os cuidadores e cuidadoras. Agradeço as creches e infantários junto das paróquias. Agradeço os colégios católicos. Agradeço a Universidade Católica. Agradeço os seus educadores e educadoras, professores e professoras.

Agradeço os Papas, na estrada contínua desde Pedro. Agradeço os Papas do meu tempo, qual deles mais extraordinário: Paulo VI, S. João Paulo II, Bento XVI, Francisco. Agradeço as encíclicas, exortações apostólicas e outros textos papais. Agradeço a Igreja escola formidável de pensamento, a alimentar o tempo com inspirações do cristianismo. Agradeço a comunicação social cristã, dando o seu sentido ao pluralismo, capaz de ler, reflectir e comunicar os seus valores. Agradeço os incontáveis autores cristãos que, em cada época, enriquecem, com seus livros, a Cultura e a Ciência, a Teologia, a Filosofia, a História, a Economia, a Ética, as Ciências Sociais e Políticas. Agradeço os bispos. Agradeço o sentido pastoral. Agradeço a permanente inspiração para a acção cívica e social. Agradeço a Igreja exigente: quanto ao Bem, ao Amor, à Liberdade, à Dignidade e à Justiça.

Agradeço.

2 Agora, quando os bispos vão decidir os próximos passos concretos no enfrentamento dos abusos sexuais dentro da Igreja em Portugal, agradeço revigorarem a coragem. A Igreja sairá mais forte e mais sã, depois de vencida esta prova. Agradeço serem capazes de vencer por todos nós, separar o trigo do joio, afastar os que têm culpas, chegar à proximidade da reparação com as vítimas, abrir um tempo novo.

Nas vozes que soaram após o Relatório Final da Comissão Independente, não surpreende que algumas ecoassem o discurso dos que sempre detestaram Jesus Cristo e odeiam a ICAR, como escrevem o desdém. Só surpreende que tivessem livre curso em imprensa de referência. Colocando a culpa na própria “a Igreja”, na sua mera existência ou em todos “os padres”, tratados colectivamente como réus, escreveram frases e parágrafos de ignomínia, como tabloides de sarjeta. É gritaria de culpa colectiva como a do líder do Chega contra os ciganos ou dos nazis contra os judeus. Agradeço ignorarem essas vozes. Haverá mais quem responda. A questão não é o berreiro anticlerical. A questão é haver vítimas abusadas e ter havido abusadores. Agradeço à Igreja afastar estes, cuidar daquelas. É esse sempre o seu serviço: expulsar o mal, fazer o bem.

Nas exigências que se fazem à Igreja, há como que um duelo entre exigir-lhe movimentos “de uma vez por todas” e compreender a sua natureza de uma entidade de “todos os dias”. Eu, embora compreenda a necessidade pontual de safanões, adiro a este último entendimento: a Igreja é de todos os dias e não de repentes. Os repentes falham muitas vezes e esgotam-se sempre ao fim de algum tempo. Precisamos, agora, de um corte cerce, de um safanão, porque atingimos um ponto de crise. Mas ninguém pode acreditar que o safanão resolve o problema “de uma vez por todas”. Não resolve. O que resolverá esse problema, como todos os outros, é a acção renovada, a atenção atenta “todos os dias”. É assim que a Igreja mais actua e mais sabe: todos os dias, como quem lava a cara pela manhã. Nunca nada ficou resolvido para sempre. É todos os dias que temos de assegurar o bem. E fazer.

Hoje, há vigília de oração suscitada pela questão dos abusos sexuais na Igreja. Tenciono lá estar. Estarei com este espírito. Gratidão e confiança. Exigência mesmo. Gratidão pelo que a Igreja me deu, gratidão pelo que a Igreja me dá. Confiança de que no futuro terei ainda mais gratidão. Exigência disso mesmo: estarmos ainda mais gratos no futuro.