A perturbação no seio de sectores específicos de profissões diferenciadas, como militares e juízes, está aí. Terão as suas razões. Virão outros. Na saúde, a contestação atingiu dimensão, em termos de grupos profissionais envolvidos, nunca antes vista. As greves dos profissionais da saúde, têm um efeito simbólico que é habitualmente muito superior ao seu impacto sobre os utentes. Isto resulta do elevado sentido de dever e profissionalismo que caracteriza estas profissões. Ao contrário de uma greve de transportes, as que conseguem ter mais eficácia na disrupção da economia, as greves de profissionais de saúde podem ser mitigadas porque há serviços mínimos muito abrangentes e porque há um trabalho de recuperação de atrasos de exames, consultas e cirurgias, que é feito pelos mesmos que estiveram em greve. As greves na saúde têm custos que são diluídos ao longo de semanas ou meses.

Normalmente, apesar do enorme incómodo político que geram para a imagem do Governo, não são as greves do pessoal da saúde que aceleram a solução dos problemas, embora tenham o condão de trazerem para o conhecimento público assuntos que passariam despercebidos. Neste caso, confrontando um Governo que vive da imagem e não da substância, até terá havido algum ganho no campo das promessas, no caso dos técnicos de diagnóstico e terapêutica ou dos farmacêuticos, a quem garantiram a aprovação das carreiras, e, no dos médicos, com a publicação da reposição de parte do valor pago pelas horas extraordinárias. Note-se que esta redução tinha ocorrido por via das imposições da Tróika, a tal que nos trouxe um programa de resgate que foi pedido e negociado por um Governo do PS. Para já, embora só haja devolução total do valor pago por trabalho extra em 2018, porque é o que quer dizer uma reposição salarial prevista para o trabalho prestado em Dezembro de 2017, os médicos terão ficado, em parte, satisfeitos.

O corte de 35% nas contratações excepcionais de pessoal contratado à hora, em especial de médicos, já se percebeu que não vai acontecer, ainda mais quando, com este Governo, já tivemos, em 2016 e 2017, um crescimento dos pagamentos a “tarefeiros”, os médicos de recurso que são contratados à hora para colmatar faltas e situações de carência grave. Solução? Não se reduz o número de horas contratadas, mas reduz-se o preço da hora. Já se fez isso antes e o resultado foi ter de voltar a atrás e pagar o que teve de ser pago, sob pena de não haver médicos nas urgências. Entretanto, houve uma daquelas demissões de diretores que se ameaça, anuncia e nunca acontece, mas que costuma ser suficiente para que alguma coisa fique na mesma e raramente consegue que alguma coisa mude. Neste caso, o Hospital Fernando Fonseca já vai poder contratar quem precisar, como tem sido hábito, embora não vá ter mais pessoal do quadro. Este é escasso em todo o lado.

As greves do pessoal de saúde têm de manter o seu elevado valor simbólico, mas não podem ferir as pessoas. O capital de credibilidade dos profissionais de saúde está alicerçado na confiança que o público tem no seu trabalho, na sua disponibilidade e na sua abnegação. Uma greve na saúde tem de ser usada como um instrumento reivindicativo e demonstrativo. Têm de ser greves muito bem concebidas em termos do seu momento de ocorrência, duração, impactos estimados nos serviços e na capacidade de angariação de apoios junto dos utentes, dos meios de comunicação social e dos políticos.

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São greves destinadas a incomodar o patronato, neste caso o Ministério da Saúde, mas não podem prejudicar os utentes. Ultrapassados estes limites, havendo greves por tempo indeterminado, self-service, de apenas alguns profissionais, de zelo, específicas para certas tarefas ou sem respeito pelos serviços mínimos, para lá das questões da falta de legalidade há a perda de empatia da opinião pública e o risco de haver a percepção de falta de respeito pelos cidadãos. Os profissionais de saúde, em contexto de greves incompreendidas e perdendo a identidade que os distingue, ficam em risco de serem confundidos com arruaceiros ou com pessoas sem o escrúpulo ético que, em condições normais, dá aos trabalhadores da saúde uma capacidade de exigência ímpar. Podem pedir muito porque dão, todos os dias e a todas a horas, muitíssimo. Perdendo isso, essa marca simbólica, perdem a razão e, sem o apoio do público, perdem o presente e o futuro. Façam greves, aquelas que considerarem justas, mas não firam os doentes e utentes. Eles não vos perdoarão.

Devidamente “apertado”, o ministro vai dizer que “não negoceia sob pressão” e, depois, lá dará qualquer coisa. Não será muito porque, apesar do que nos tentou convencer no seu início de mandato, tem pouco para dar. As finanças não deixam. Mais que não seja, promete diplomas de carreiras que só serão aplicadas em 2018.

As opções do Governo têm sido aplicar austeridade reforçada à custa da qualidade dos serviços públicos. Não se esperaria isso de um Governo que o faz com a passividade da extrema-esquerda, contra as minhas expectativas, e a tolerância de um País inteiro que vive da ilusão de “rendimentos” que não foram verdadeiramente repostos.

Estou certo que o Ministério da Saúde preferiria, como sempre preferiu, poder remunerar melhor para contratar e fixar o pessoal de que tanto precisa. Mas, tendo sido obrigado a reposições salariais para as quais não estava devidamente provisionado – incluindo a passagem de funcionários de 40h para 35h de trabalho semanal –, pressionado pela crescente procura por cuidados de saúde, sendo obrigado a contratar pessoal que ainda faz falta, está “falido” e não consegue responder às promessas de maior e melhor acesso a medicamentos e cuidados, mais lugares de cuidados continuados, mais USF, etc.

O ministro vai tendo a sua autoridade minada e, quando a situação financeira e as dívidas forem iguais às de junho de 2011, não faltarão correligionários a quererem despachá-lo para de onde veio.

Veja-se o episódio caricato do concurso para a sede da Agência Europeia do Medicamento (EMA). O Ministério da Saúde, o Governo e a Assembleia decidiram e aplaudiram que seria apresentada uma candidatura por Lisboa. Incompetência, precipitação, falta de visão estratégica, mesquinhez? O Porto protestou. António Costa percebeu que precisava de apoiar o Manuel Pizarro e não deixar potencial de queixa de Lisboa, coisa que rende muitos votos na Invicta, ao Rui Moreira. Faz-se uma Comissão. Decide-se que afinal o Porto é que é bom. Não era óbvio? Ficaram todos contentes, excepto, ao que parece, os funcionários da EMA que quereriam vir para Lisboa. Coisa de somenos.

A Agência Europeia do Medicamento não vem para Lisboa e Costa dirá que a culpa será dos Bárbaros, Francos e Teutões, que não gostam de nós. Ele, Costa, fez tudo. Até obrigou o ministro da saúde a dizer, com ar contristado, que é do Porto desde pequenino. A EMA vem e Costa, sempre ele, é um génio. Há sempre uma esperança.

Os governos, tal como as pessoas, envelhecem mas nem sempre bem.