Me flagrei numa situação muito estranha. Entrei no avião, me acomodei na fileira 41 e, ao olhar para o lado, vi uma mala preta desacompanhada, encostada na janela. Olhei para a mala uma, duas, três vezes. Analisei-a, questionei-a, imaginei coisas.

Por via das dúvidas, chamei a comissária. Pedi licença para fazer um pergunta estranha: desculpe, é normal que essa mala esteja aí sozinha? Ela deu um sorriso e me disse para ficar tranquila, pois tratava-se da mala do seu colega de tripulação. Agradeci e me acomodei melhor na minha poltrona.

Percebi que a minha pergunta é fruto inevitável de dois anos e meio morando na Europa. Brasileiros não têm medo de malas. Temos medos de outras coisas: violência urbana, sequestro relâmpago, cobras venenosas e dos vampiros do PMDB. Esses são medos naturais e inevitáveis para um brasileiro.

Mas, de fato, malas abandonadas não costumam nos assustar. Pelo contrário, nossa tendência natural é nos aproximar, dar uma olhadinha, imaginar a cara do dono da mala e seguir adiante. Brasileiros não têm medo de bombas, o que é algo realmente curioso.

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Quando morei em Paris, um dia saí do metrô na estação Saint Michel e logo que subi as escadas para a superfície vi três aviões militares voando baixo. Não tive nem tempo de pensar e voltei correndo para dentro do metrô. Percebi que fui a única que teve essa reação, pois os parisienses sabiam bem que tratava-se de um ensaio para as comemorações do 14 de julho. Não consigo me imaginar fugindo de aviões voando baixo no Brasil. Iria olhá-los, curiosa, quiçá até acenando para o piloto. Mas era Paris. Paris é alvo. Paris é risco. E eu não me esquecia disso por nenhum minuto.

É difícil definir o que chamamos hoje de “segurança”. Honestamente, nunca me senti mais segura em Paris ou em Londres do que me sinto em São Paulo. São ameaças diferentes, mas ambas existem. Atentados de um lado, assaltos do outro. Podemos morrer em ambos. Podemos sobreviver a ambos. Temos medo de ambos. Temos uma parcela de culpa por ambos. Nossa intolerância, nossa anuência com sistemas de segregação, nossa riqueza não partilhada, nossas oportunidades que não foram oferecidas a todos. Somos vítimas e agressores ao mesmo tempo.

Não sei se ainda há lugares específicos onde nos sentimos seguros. Em Portugal ainda há indícios de segurança, embora toda certeza seja uma ilusão. Não gosto de ter medo de malas. Não quero ter medo de malas. Embarcar na neurose não torna ninguém mais seguro pois, como diz O Rappa “as grades do condomínio são pra trazer proteção, mas também trazem a dúvida se é você que está nessa prisão”.

Talvez o jeito seja não vivermos diariamente imaginando um inimigo hipotético. Talvez tenhamos que entender que boa parte dos problemas do mundo são frutos dos nossos olhares tortos e da nossas formas equivocadas de prezar pela nossa segurança em prejuízo da dignidade alheia. A única coisa que seguimos podendo fazer é buscar paz através do voto, através das nossas atitudes e seguir tendo fé. Até porque, como diz o sábio, ninguém morre antes da hora. Que assim seja.