1 Podemos tentar analisar o pacote final do “Mais Habitação” de qualquer ponto de vista (como fizemos esta segunda-feira no programa “Justiça Cega”), podemos ver os seus defeitos (que são muitos) e as suas virtudes (que são poucas — umas mais interessantes do que outras) e até podemos concordar no diagnóstico óbvio de que há um aumento elevado dos preços (claramente acima do poder de compra médio nacional) devido a um estrangulamento na oferta mas divergir nas soluções. Podemos fazer tudo isso.

Contudo, tudo se resume a uma palavra simples mas suficientemente poderosa para impedir a eficácia de qualquer proposta do Governo: confiança.

Confiança dos proprietários nas promessas fiscais de Fernando Medina para o arrendamento acessível e para as rendas antigas que serão congeladas ad eternum, confiança dos senhorios no Estado para arrendar um imóvel que será subarrendado a um terceiro que será escolhido pelo Estado, confiança dos investidores para aplicar capital em projetos promovidos pelo Estado e confiança dos promotores de que realmente será eliminada e flexibilizada a burocracia no licenciamento urbanístico.

Mas também confiança dos inquilinos mais carenciados de que o Estado será suficientemente competente e ágil para ganhar escala no seu novo modelo de negócios de arrendar para subarrendar aos cidadãos, confiança de que os mais endividados acederão em tempo útil aos juros bonificados, confiança de que os programas específicos de acesso à habitação para os mais jovens funcionam e confiança de que as promessas de isenção de mais-valias de vendas ao Estado e para amortização de crédito serão cumpridas.

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Isto, claro, partindo do pressuposto de que o Estado de Direito continua imaculado em Portugal e que a economia de mercado ainda é a base do nosso sistema de produção e de distribuição de riqueza.

2 Sem desvalorizar os inquilinos e o verdadeiro problema da habitação nos principais centros urbanos do país — e que é real, sem sombra de dúvida —, é do mais elementar bom senso que qualquer solução estrutural tem de ter em conta os proprietários.

É por isso que o principal pecado deste programa esteve sempre na forma como foi apresentado inicialmente por Marina Gonçalves. Agindo como uma pura gonçalvista, a ministra da Habitação fez dos proprietários e dos investidores os inimigos públicos n.º 1 do mercado de habitação. E tentou promover o medo nas famílias.

O Governo tentou corrigir essa péssima imagem inicial, corrigindo o tiro e apostando no pacote final aprovado em Conselho de Ministros em medidas de incentivo fiscal por via da redução progressiva do imposto a liquidar sobre o rendimento predial, no caso de o proprietário apostarem em alugueres de médio e longo prazo.

Tal como passou a prometer isenções fiscais nos contratos de rendas antigas (que vão voltar a ficar congelados), na venda de imóveis ao Estado ou até entre particulares desde que a receita sirva para amortizar créditos bancários de habitação própria e permanente.

Medidas corretas. Muito bem.

3 O problema é todo o péssimo historial que o Estado tem no mercado imobiliário. Como quer o Estado que os proprietários confiem nestas medidas se as regras estão constantemente a mudar? Quem é que garante (ou acredita) que as isenções fiscais para contratos de aluguer para 20 anos vão mesmo durar 20 anos? Ou que as isenções fiscais não são revertidas daqui a uns anos?

Estamos a falar de um Estado que congelou as rendas desde a I República até aos anos 90 — e só liberalizou efetivamente o mercado de arrendamento com o Governo de Passos Coelho —, obrigando milhares e várias gerações de proprietários a receberem rendas miseráveis por imóveis que valiam muito mais, ao mesmo tempo que se exigia que fizessem obras de conservação de valor muito superior às rendas que recebiam.

Estamos a falar de um Estado que descongelou as rendas (protegendo os mais velhos e mais carenciados) para voltar a mudar as regras a partir de 2015 com a promessa de que as rendas antigas iriam mesmo terminar. E agora volta a baralhar tudo novamente e a dizer que, afinal, as rendas antigas serão eternas.

Estamos a falar de um Estado que incentivou, e bem, que muitas dezenas de milhares de portugueses de classe média tentassem aumentar os seus rendimentos através do Alojamento Local (AL), fazendo aquilo que é suposto numa economia de mercado: investir, arriscar e rentabilizar.

Agora o mesmo Estado diz, sem mostrar estudos que fundamentem tal acusação, que o AL é uma das causas do estrangulamento da oferta da casas para vender e alugar.

Como é que os proprietários e os investidores podem confiar num Estado assim?

Mais um exemplo: como é possível reconquistar a confiança dos proprietários e dos investidores no mercado de arrendamento quando as regras para o despejo são rígidas e beneficiam os infratores que não pagam? Que o Estado e as câmaras municipais nem sequer queiram cobrar rendas simbólicas no arrendamento social, isso é lá com eles. Mas não é assim que o investimento privado funciona.

4 Uma das possíveis explicações para o problema da habitação nos principais centros urbanos do país também passa pela estagnação salarial que o país vive desde há muito. Como já expliquei aqui e aqui, a maior crítica que pode ser feita a António Costa ao fim de quase oito anos no poder é que nada de estrutural fez para mudar o perfil da economia portuguesa e aumentar a sua competitividade.

Bem pode Costa encher a boca com os aumentos do PIB acima da média da União Europeia — quase sempre por razões extraordinárias — que tal não se reflete num aumento real e significativo do salário médio. Pior: ter o SMN – Salário Mínimo Nacional (que foi o único que aumentou brutalmente por decisão administrativa do Governo) cada vez mais próximo do salário médio não é bom e ter cada vez mais pessoas a receber o SMN é sinal de um país cada vez mais pobre. E com cada vez menos ativos a pagar IRS, já agora.

Consequência: o SMN português era em 2022 o 13.º mais elevado da União Europeia (UE), enquanto o salário médio era o 4.º pior registo da UE. Este dado diz muito sobre a política económica do Governo Costa e de nada servem promessas vazias.

5 Além do problema salarial, há ainda a montante outro problema grave que afeta a crediblidade do programa “Mais Habitação”: a erosão da confiança do eleitorado no Executivo e no próprio primeiro-ministro — que se tem vindo a agravar, como a última sondagem do Expresso bem demonstrou.

Desde novembro de 2022 que os dados dos estudos de opinião se têm vindo a agravar de forma sustentada. Não é a avaliação negativa de mais de 64% dos inquiridos ou o tombo de sete pontos percentuais no estudo de opinião do ISC-ISCTE que devem preocupar António Costa e a sua central de propaganda.

É o facto de todos os estudos confirmarem a tendência de queda a pique da confiança dos portugueses nas capacidades do Governo e, pior do que tudo, cada estudo ter dados piores do anterior. Exemplo: em janeiro, o estudo da Pitagórica para a TVI/CNN referia que 53% dos inquiridos avaliavam negativamente o Executivo.

É quase como se as buzinas que marcaram a conferência de imprensa do Governo em Almada (bem dita central da propaganda que pensa nas velhas tendas socráticas para fazer anúncios políticos) fossem uma metáfora da popularidade do Governo.

Ironias à parte, a pergunta que se impõe é simples: como pode um Governo que parece ter perdido a confiança dos portugueses reformar algo tão complexo como o mercado da habitação? Se os socialistas pensam que a maioria absoluta lhes garante carta branca até 2026, é melhor pensarem duas vezes…

6 As prestações cada vez mais deprimentes de António Costa só agravam o problema, refira-se. Veja-se, por exemplo, a última entrevista na SIC sobre o pacote da habitação. Perante perguntas certeiras da minha colega Clara de Sousa sobre objetivos concretos a atingir (números de casas a disponibilizar pelo programa “Mais Habitação”, por exemplo), Costa balbuciou.

Pior: deu mostras de uma terrível falta de autoridade política. Seja na questão do arrendamento coercivo — a tal medida que a própria ministra Marina Gonçalves fez muita questão em apostar —, seja na questão do licenciamento urbanístico, seja até na construção de um parque público de habitação, as autarquias são parceiros essenciais para que o programa do Governo seja levado a bom porto.

Ora, as principais autarquias do país, sendo que algumas delas são socialistas, já disseram que o pacote “Mais Habitação” não vai resultar. E o que faz António Costa? Limita-se a encolher os ombros, afirma que ao Executivo apenas lhe cabe dar ferramentas às autarquias (no caso do arrendamento coercivo), não estipula objetivos e adia para o dia de são nunca à tarde as medidas de desburocratização do licenciamento.

E ainda sacode para as autarquias a decisão final sobre as licenças do AL — que antes queria proibir.

António Costa é um artista. O problema (para ele) é que os portugueses já estão cansados das suas habilidades e da sua permanente e constante desresponsabilização. Já não há saco.