O tempo que vivemos na saúde é um rol de tormentas, cujo cabo está difícil de ultrapassar. À vista de todos estão as políticas desajustadas, a falta de entendimento das estruturas de saúde e das reais necessidades das pessoas, dos utentes aos profissionais. As tormentas visíveis há muito são agora difíceis de dobrar. Hospitais com urgências fechadas. Cuidados de Saúde Primários sem equipas completas em que faltam médicos, enfermeiros, assistentes operacionais e assistentes técnicos. Equipas com escalas a descoberto, com falta de equipamentos e de condições de trabalho. Listas de espera para consultas de especialidade sem fim à vista e listas de espera cirúrgicas cada vez maiores, tudo isto num contexto pós-pandemia, onde os diagnósticos tardios necessitam cada vez mais dos profissionais de saúde e as pessoas de acederem à saúde. Alia-se a tudo isto a desmotivação dos profissionais que ainda se mantêm com resiliência, e muitas das vezes por “amor à camisola”, neste sistema de saúde fracassado e que não dá resposta às necessidades das pessoas, nem motiva os seus profissionais a ficarem.

Por tudo isto, de algum modo é necessário mudar. Mudar o sistema, mudar a organização, mudar a forma como cuidamos uns dos outros, mudar a saúde em Portugal. Necessitamos de gestão, de transparência, de políticas de Saúde ajustadas à realidade e de profissionais motivados, com carreiras reconhecidas e com condições de trabalho que permitam acessibilidade à saúde para todos.

A situação atual dos serviços de obstetrícia, onde se incluem as urgências, são um exemplo bem vincado e presente que, durante anos, apesar das diversas tentativas de negociação com o governo e dos avisos dos profissionais em como um dia estaríamos no atual estado de rutura, tudo foi ignorado. E aqui estamos nós, numa situação inaceitável de uma grávida ter a urgência obstétrica mais próxima a cem quilómetros. Numa situação em que, em caso de urgência, temos de ir à internet consultar um portal para saber qual a urgência mais próxima a funcionar.

Temos um governo incapaz de prever mesmo quando alertado, e que clama contingência perante serviços e profissionais em falência.

Inadmissível nos dias de hoje acontecer tamanha atrocidade, sobretudo para aqueles, como eu, profissionais de saúde em exercício exclusivo no SNS, durante duas décadas. É inconcebível deixarmos lesar as nossas pessoas, as nossas famílias, numa área fundamental: a saúde.

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Para mim, enquanto profissional de saúde, mas também enquanto alguém que assume uma visão liberal para a saúde (e não só), todo o potencial e capacidade existente na sociedade, ao nível da saúde, tem e deve ser colocado à disposição das necessidades das pessoas, dando-lhes liberdade de escolha entre diferentes prestadores. É preciso tornar eficiente o funcionamento de todas as estruturas de saúde e, em paralelo, valorizar as competências dos profissionais de saúde, motivar os mesmos, reconhecer as suas carreiras, criar políticas de ajuste e retenção de profissionais visionando as dotações seguras nas práticas clínicas, a complexidade dos cuidados a prestar e a vocação especializada para cada área de prestação de cuidados.

Ouso até dizer que deveríamos reverter a forma como o SNS está organizado, pois considero que as prioridades estão invertidas. Considero que o SNS deveria focar-se nos Cuidados de Saúde Primários, onde nós, profissionais de saúde, vigiamos, promovemos e protegemos a saúde das pessoas, garantindo que estas se mantêm saudáveis. Esta perspetiva e funcionamento do SNS permitiria evitar urgências, e evitar tratamentos tardios e mais dolorosos. Permitiria uma melhor qualidade de vida para as pessoas, poupanças para o Estado (para nós, contribuintes) e algo também importante, menos pessoas incapazes de trabalhar e dependentes do Estado, pessoas aptas para perseguir os seus sonhos e projetos.

Os Cuidados Hospitalares, nesta perspetiva, deverão ser utilizados quando a situação clínica assim o exige e, na maioria das vezes, já após passagem das pessoas pelos Cuidados de Saúde primários. Sucintamente, a saúde tem de estar próxima das pessoas, tem de ser um instrumento válido, de fácil acesso e utilização para quem dela necessita, de forma proactiva ou reativa. E quem necessita somos todos nós.Não podemos esquecer que o Estado deve garantir a acessibilidade e a equidade na Saúde, sendo este o caminho que algumas forças políticas, como a Iniciativa Liberal tem feito com as suas propostas. Articulação entre o público, o social e o privado na saúde, de modo a alargar a oferta de saúde às pessoas, numa época de tanta escassez e que causa tormentos a todos. Não é um capricho ideológico, nem uma necessidade temporária, mas algo imprescindível.

Para darmos esperança às pessoas, este Cabo das Tormentas na Saúde tem de ser ultrapassado. Haja capacidade e saúde para o dobrar.