Sou fisioterapeuta de Cuidados Paliativos e continuo a achar que esta discussão e potencial aprovação da morte medicamente assistida está a ser tida fora de tempo, em jeito de “corta-mato” abrupto. A eutanásia parece ser a solução milagrosa para cortar com a coisa mais natural e inevitável da vida: o sofrimento. Provavelmente é uma discussão que poderá vir a fazer sentido, mas apenas quando os recursos que minimizam o sofrimento estiverem esgotados.

Ter uma condição de saúde grave e irreversível em Portugal não é fácil. Quando se define este estádio, quer se esteja em casa ou no hospital, transita-se do estatuto de “pessoa” para o de “doente”. Isso envolve vestir pijama seja noite seja dia, estar confinado ao leito para “não fazer esforços” e onde tudo é feito por si. Estar muito doente em Portugal é quase sinónimo de não poder tomar decisões elementares do dia-a-dia. Há sempre alguém, carregado de boa vontade, que se encarrega de fazer tudo. Até de viver a vida do outro. Nestes casos, o “cuidador” sente-se esgotado por abdicar da sua vida para viver a da pessoa cuidada e o “doente” vê-se transformado num fardo para o mundo. Este é um momento em que a eutanásia parece ser uma solução viável. Porém, é?

Se, ao invés do que acontece hoje em dia, permitirmos, enquanto sociedade, que uma pessoa com uma doença grave e incurável seja tratada como pessoa até ao fim da sua vida, talvez esta vontade desconhecida pela despenalização da eutanásia mude. Não nos podemos esquecer que quem vota esta lei não está em situação de poder requerer eutanásia para si próprio. Este “suponhamos” existe porque temos medo de estar doentes ou de ser velhos. Estes momentos da vida estão associados a um enorme sofrimento que, regra geral, não está associado apenas às dores, mas sim à perda de autonomia. Como muitas das pessoas que trato dizem, “o pior disto tudo, é que já não deixam uma pessoa decidir nada”. Estar doente e ser velho em Portugal tem sido isto. Talvez esteja ao alcance de todos mudar esta mentalidade e forma de vida.

É aqui que faz todo o sentido reforçar uma outra discussão que tem vindo a ser tida, mas que é menos apelativa e fácil de concretizar do que a eutanásia: o investimento em Cuidados Paliativos Qualificados. Estes cuidados são muito mais do que a administração de morfina para alívio das dores (quaisquer que estas sejam). Estamos a falar de cuidados diferenciados, prestados por uma equipa multidisciplinar, que consistem numa abordagem holística de intervenção ao nível físico, psicológico, emocional e espiritual de cada pessoa e da sua família. Permitem encontrar sentido onde parece já não haver.

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Como fisioterapeuta de Cuidados Paliativos posso partilhar que poucas foram as pessoas que cuidei que me fizeram sentir que “já não havia nada a fazer” e ainda menos aquelas que pediram para antecipar a morte. Isto porque, tendo acesso à redescoberta de uma vida que ainda vale a pena viver, perceberam que o fim não tinha de ser forçado. Infelizmente, conheci pessoas também a quem a eutanásia teria sido a resposta. Contudo, contam-se pelos dedos de uma mão. E é a pensar apenas nessa minoria que a eutanásia deve ser discutida. O que não se tem verificado. Mas cada coisa a seu tempo, e, antes de se falar em eutanásia, faz sentido discutir e promover uma prestação de Cuidados Paliativos acessíveis a todos, o que também não tem sido feito.

Deixo, assim, as perguntas: afinal, como é que a fisioterapia pode ser uma forma de minimizar o sofrimento? O que haverá para reabilitar numa pessoa que está a morrer? A fisioterapia em Cuidados Paliativos não procura recuperar a função perdida, mas sim fazer um luto saudável dela. O principal foco é a promoção da autonomia com a função que existe. No fundo, desenvolver estratégias que permitam a cada pessoa reencontrar o seu sentido de vida e adaptá-lo a cada nova fase da progressão da doença. Acima de tudo, criar condições para que as pessoas façam o que lhes fizer sentido e der prazer, sempre que puderem. E temos exemplos internacionais tão bonitos como o de físico Stephen Hawking, que só com o movimento dos olhos conseguiu viver de forma plena até à morte e deixar tanto ao mundo.

Se há coisa que tenho aprendido com as pessoas com quem trabalho, é que a vida vale sempre a pena ser vivida, e que a autonomia é a característica que mais nos define como pessoas. Todos os dias relembro-me que cada pessoa com quem trabalho tem personalidade, convicções, sonhos. E sinto-me privilegiada por poder fazer parte de um fim de vida melhor para tanta gente. Como se costuma dizer neste ramo, por poder ajudar a “dar vida aos anos, e não anos à vida”.