A circulação de pessoas, de capitais e de produtos acentuou-se de forma extraordinária na última década. As economias são hoje mais interdependentes. É mais difícil prever a forma e a dimensão como o encerramento de empresas na China afecta a produção da Europa, nos Estados Unidos ou na América Latina. Uma das dimensões mais salientes dessa interdependência é o desenvolvimento das cadeias de valor global, que representam hoje cerca de dois terços do comércio mundial. Automóveis, aviões, telemóveis resultam da agregação de componentes produzidas numa miríade de empresas, de diferentes pontos do planeta.

Ao contrário da crise financeira internacional, a crise do Covid-19 não tem causa humana. A sua novidade torna muito difícil fazer previsões sobre o seu impacto na saúde humana e na economia. Isto “… não pode ser incluído num modelo, porque é algo que nunca tínhamos visto”, queixava-se o economista-chefe do banco JPMorgan, citado pelo New York Times. É a novidade do fenómeno que inquieta e assusta.

Uma parte da queda das bolsas (a maior desde a crise financeira internacional) e do preço do petróleo (a maior desde a primeira Guerra do Golfo em 1991) deve-se à incerteza (e algum pânico). Porém, a incerteza não explica. Uma parcela das quebras nos preços das acções resulta da deterioração da situação económica. A actividade económica e as exportações chinesas registaram uma quebra nos dois primeiros meses do ano. Essa quebra poderá ter reduzido a poluição em cerca de 25%. O preço do petróleo não podia passar incólume à redução do consumo no maior importador daquela fonte de energia.

A quarentena em Itália, alargada a todo o país na segunda-feira, irá afectar a produção e a procura, em especial o consumo de serviços que envolvem grande contacto social (viagens, turismo, restaurantes ou compras em centros comerciais). A queda nos preços das acções das companhias de avião e de empresas ligadas ao turismo foi brutal: no último mês, a Lufthansa perdeu cerca de 30% do seu valor em bolsa e a Booking mais de 20%.

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Para compensar a quebra nas receitas, muitas empresas adiarão a realização de investimentos, o que produzirá efeitos recessivos na economia. Outras poderão ir mais longe na redução dos custos, reduzindo a sua força de trabalho, não renovando contratos a prazo e prescindindo de trabalhadores em part-time.

Em todas as recessões, entram em falência empresas com excelentes planos de negócios e boas equipas de gestão, porque as suas vendas são afectadas pelas quebras no consumo e no investimento. Pela mesma razão, há excelentes trabalhadores que perdem o emprego. Estas empresas e trabalhadores são vítimas de um contexto adverso – neste caso, causado por um vírus. A sua saída do mercado pode afectar negativamente a capacidade produtiva da economia no longo prazo.

Imagine um hotel, que antes da crise do Covid-19 tinha óptimas taxas de ocupação, uma excelente equipa de colaboradores, que levou anos a formar. De repente, devido ao vírus, vê-se obrigado a reduzir em 50% os custos com pessoal. Quando esta crise passar, quanto tempo será necessário para que este hotel recupere a qualidade do seu serviço e taxa de ocupação?

Tentar limitar as falências e desemprego que resultam de reduções conjunturais da procura, e não de ineficiências das empresas, é precisamente um dos objectivos originais das políticas keynesianas. É nesse sentido que vão as recomendações do ex-ministro das Finanças, Vítor Gaspar, num artigo publicado no blogue do Fundo Monetário Internacional (FMI) (link: https://blogs.imf.org/2020/03/05/fiscal-policies-to-protect-people-during-the-coronavirus-outbreak/). O actual director no FMI considera que “Aqueles que forem mais afectados não devem entrar em insolvência ou perder o seu modo de vida por algo em que não se deveu à sua acção.”

As medidas propostas pelo Governo para apoiar as empresas e o emprego estão alinhadas com as propostas do FMI. O adiamento do pagamento de impostos (pagamento especial por conta); a linha de crédito reforçada para proporcionar liquidez às empresas; redução temporária dos períodos de trabalho (lay-off), suportada em 70% pelo Estado, ficando as empresas isentas de pagar contribuições para a segurança social (TSU). Adicionalmente, os trabalhadores em lay-off serão envolvidos em actividades de formação e qualificação também subsidiadas pelo Estado.

Dada a fragilidade da situação financeira de muitas empresas, muito endividadas, é também crucial garantir que os bancos estão preparados para acomodar períodos de carência para situações de incumprimento.

Estas medidas, que estão também a ser seguidas por outros países, são essenciais. Mas num mundo muito interdependente, serão também cruciais as medidas tomadas pela União Europeia e pelo Banco Central Europeu (BCE). Ao contrário da crise das dívidas soberanas, esta crise tem origem na natureza, num vírus. Os países vão ser afectados de forma diversa, por razões que não resultam das suas escolhas. O argumento do risco moral na crise nas dívidas soberanas, isto é, ajudar os países endividados seria incentivá-los a endividarem-se mais no futuro, não se aplica neste caso.

Com países como Portugal ou a Itália, ainda muito endividados, é o momento ideal para uma intervenção radical e decisiva do BCE: a utilização do ‘helicóptero’, que Mario Draghi chegou a considerar. O BCE devia garantir a liquidez necessária às empresas através de emissão de moeda. Desta forma, reduzia significativamente a incerteza económica e impedia a destruição da capacidade produtiva da economia. O BCE e a UE dariam desta forma um contributo decisivo para que todos os países se concentrem no combate à epidemia do novo coronavírus.

Se não há solidariedade europeia na hora da doença, então na União Europeia a solidariedade é uma palavra vã.