Os “deploráveis” existem. E votam. Sim, eu sei que o facto de ter chamado deploráveis aos apoiantes de Trump pode não ter valido a derrota a Clinton, mas explicará alguma coisa do seu desastre eleitoral. Mas se Clinton errou no alvo acertou no termo: deploráveis. Esta foi uma campanha cheia de momentos deploráveis e, coisa que certamente nos dará muito que fazer nos próximos tempos, de ideias deploráveis.

Mas para já fico-me não pelo que de deplorável disseram e fizeram os candidatos (e foi muito e para todos os gostos e desgostos), mas sim pela deplorável clivagem entre o noticiado, e por conseguinte comentado, e a realidade. E disto não foram responsáveis Clinton ou Trump mas sim a transformação do jornalismo numa variante da ficção. Para mais de uma ficção repetitiva no argumento, maniqueísta no enredo e consequentemente pobre no desenho das personagens: de um lado está o Bem e do outro o Mal. Sabe-se que o Bem vai vencer o Mal e levam-se meses a fazer vídeos, a imaginar graças, a conceber textos e a escrever nas redes sociais sobre as patetices e as iniquidades dos maus. Não se conhece ninguém que apoie os maus. No fim vai-se a votos e os maus ganham. Foi esta espécie de narrativa de “uma derrota mais que anunciada que não se sabe como se transformou numa vitória absolutamente inesperada” que vimos no Brexit, no referendo na Colômbia e agora nas eleições dos EUA. Ao fim de tão clamorosos falhanços, cabe perguntar: este idiotismo acaba quando? Fazem-se entrevistas no fim do mundo e depois não se consegue perceber o que está a acontecer diante dos nossos olhos?

Mas não são apenas os jornalistas que falham. Observadores, fundações e universidades, gabinetes de estudos, centros de análise, especialistas em sondagens… parecem incapazes de ir além do que desejavam que acontecesse.

Já sei: as pessoas mentem. Claro que sim, mas é precisamente para isso, para ir para lá do óbvio, que existem jornalismo, investigação e análise. E não para, como tem acontecido, se criarem umas ficções que, funcionando em circuito fechado, se alimentam a si mesmas num crescendo onanista que só o confronto com a realidade – o voto – literalmente estraçalha. Aliás, não deixa de ser preocupante e revelador que a cada resultado classificado como inesperado surja de imediato uma explicação que divide os eleitores em bons e maus: os bons são os urbanos, jovens e licenciados. Os artistas e os cultos. Do lado dos maus estão os ignorantes, os rurais, os velhos e, por consequência, os pobres sem habilitações académicas. No caso do Brexit, a primeira-ministra britânica, britânica repito, viu-se na necessidade de dizer que os resultados eleitorais têm de ser respeitados. Já quanto à Colômbia, dá-se como adquirido que os eleitores votaram “contra a paz” ao rejeitarem o acordo negociado pelo seu Presidente com as FARC.

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Encerrados nos seus gabinetes e nas suas redacções mas acreditando que estão ligados ao mundo, jornalistas, comentadores e investigadores vivem numa espécie de bolha onde se enfatizam entre si. Trocam mensagens em que todos pensam o mesmo, riem do mesmo e criticam o mesmo. E contudo lá fora o mundo passa a correr.

Quero acreditar que talvez a eleição de Trump torne evidente este logro e que sobretudo sirva para alertar para o que acontece quando os moderados desistem: o populismo vence. E isto vale na pequena e na grande escala. À direita e à esquerda. Da Presidência dos EUA ao Labour em Inglaterra. Vamos ver o que acontecerá em França.

Por fim, a candidata derrotada. Creio que os democratas não serão benevolentes com Clinton. Fazer dela o bode expiatório deste descalabro eleitoral será tentador. Mas, convenhamos, não é completamente justo. Obama, o Presidente que o mundo da comunicação adorou e aplaudiu, não conseguiu impedir que se acentuasse o sentimento de declínio que se vive nos EUA. E isso sim é deplorável e é talvez a tragédia do nosso tempo: ver tornarem-se ainda mais pequenos os EUA.