Em 1972, Lou Reed lançava Transformer, o seu segundo álbum a solo. A música mais famosa desse álbum talvez seja Walk on the Wild Side, inspirada pela movida transsexual e homossexual, bem como pela prostituição masculina, da noite de Nova Iorque. Transformer, como se percebe, era o nome certo para este álbum.

Muitos anos depois, em Portugal, numa notícia que qualquer pessoa de bom senso diria não ter nada a ver com Lou Reed, o Diário de Notícias contou-nos que a McDonald’s ia deixar de ter Happy Meal de rapaz e de rapariga, passando antes a perguntar às crianças qual o brinquedo que preferem. Segundo a cadeia de restaurantes, já em 2014 tinham deixado de o fazer nos EUA, mas em Portugal teriam percebido mal as instruções. A notícia do DN surgiu na sequência de uma campanha da McDonald’s que dava às meninas um Little Pony e aos meninos um boneco dos Transformers. Os brinquedos incluíam também um questionário onde era perguntado às meninas se a culinária era um dos seus talentos e aos rapazes era perguntado se tinham a força como qualidade. O que era uma quase não-notícia — a representante portuguesa de uma multinacional tinha-se atrasado a transpor uma directiva da casa mãe — gerou um levantamento de indignação pelas redes sociais e pelas colunas de opinião.

Por exemplo, João Miguel Tavares (JMT), no Público, indignado com o rumo que o mundo está a levar, explicou-nos que as macacas preferem brincar com bonecas enquanto os macacos preferem carrinhos. Na verdade, o estudo em que JMT se baseou não conclui isso em relação às macacas — diz que estas não têm preferência por nenhum dos brinquedos. Mas, mesmo assim, JMT esqueceu-se de explicar por que motivo é essencial uma etiqueta a dizer qual o sexo do brinquedo. Tem medo que os macacos e as macacas se confundam sem ela?

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O que diria JMT deste vídeo, com uns ursos a brincar com um balão cor-de-rosa? Que não podem ser ursos, mas sim ursas?

A reacção mais desabrida veio de Miguel Sousa Tavares (MST) que, no Expresso, reagiu assim: “Que horror, o McDonald´s permite-se oferecer Transformers aos rapazes e My Little Ponies às meninas, desrespeitando a livre orientação sexual de cada um, que não pode ser presumida nem orientada desta forma homofóbica!”

Que horror! A minha filha mais velha, ao preferir os Transformers, está a caminho da homossexualidade. Que pensará MST que as crianças fazem com os brinquedos? Estará a confundir o sexo dos brinquedos com brinquedo sexuais? Uma coisa é certa, os ursos do vídeo com o balão cor-de-rosa só podem ser gays. Como diz um amigo meu, MST vê os brinquedos de uma maneira diferente de todos nós. Ou, digo eu, MST é um fã de Lou Reed, e ao ouvir falar em Transformers lembra-se logo de Holly, a mulher que já foi homem de ‘Walk on the wild side’.

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Imagens do placard electrónico de há 3 semanas e de ontem. Qual o placard mais informativo?

Sempre achei uma parvoíce a divisão sexual dos Happy Meals. Era, obviamente, muito mais informativo descrever qual o brinquedo. Mas, confesso, nunca considerei o assunto muito importante. Por exemplo, apesar dos protestos da minha filha mais velha, nunca pedi o livro de reclamações. Só me apercebi da sua importância quando vi tanta gente a exigir que a McDonald’s não se adapte ao mercado actual e continue a atribuir sexo aos brinquedos.

Neil deGrasse Tyson é negro e é um dos mais famosos astrofísicos da actualidade. Há uns anos perguntaram-lhe se as mulheres teriam menos jeito para a ciência do que os homens. Nunca tendo sido mulher, preferiu falar da sua experiência enquanto criança negra. Desde os nove anos que sabia que queria ser astrofísico, mas, sempre que o dizia, os professores perguntavam-lhe se ele não preferia ser atleta. Ou seja, nos anos 60, nos EUA, um telescópio de brincar não seria adequado para crianças negras. Em Portugal, no século XXI, ainda há quem pense que não é adequado para raparigas. De alguma forma, parece que a segregação racial esbateu-se mais do que a segregação sexual. Talvez isso explique por que motivo a mesma sociedade que, actualmente, nunca aceitaria que houvesse escolas só para brancos e só para negros não se indigne com escolas só de raparigas e só de rapazes que existem quer a Norte quer a Sul de Portugal. Seria, no entanto, interessante saber o que Miguel Sousa Tavares acha delas.