O que me angustia mais é a incerteza. Quanto tempo é que isto vai durar? O que é que podemos esperar? Eu dou-me mal com indefinições. Ou bem que o mundo acaba, e eu organizo-me em função disso; ou bem que não acaba, e eu sigo com a minha vida. O ramerrame é que não. Marquem uma data, por favor. Isto não é o fim do mundo, é o definhamento do mundo. A sensação que me dá é que o apocalipse está indeciso e não sabe bem o que há-de fazer connosco. Pôs-nos na friend zone. Nem mata, nem nos manda passear. Até porque no passeio pode haver contacto social e já sabemos que isso é de evitar. Aliás, não sei se se pode falar em apocalipse quando ainda dá para se encomendar McDonalds no Uber Eats. Será possível que o apocalipse chegue aos bochechos? Um apocalipse pouco a pouco? Um poucapocalipse?

O problema desta pandemia é que era impossível prever. Não que seja grave de mais para o que a nossa imaginação consegue conceber. Era impossível prever porque é grave de menos. A nossa imaginação inventa sempre mais do que isto. Quem é o escritor que engendra uma doença tão mixuruca? Na vasta bibliografia da escatologia, o fim do mundo é sempre com explosões nucleares, invasões alienígenas ou epidemias macabras que fazem deitar sangue dos olhos, liquefazem os ossos e matam em 12 horas com dores excruciantes. Nunca é com uma espécie de uma gripe (sim, eu sei, não é gripe, deslarguem-me) que não afecta a maioria da população, mas é tão contagiosa e má para velhinhos que nos obriga a parar tudo. Convenhamos que não é o argumento mais apelativo para um filme catástrofe. É como o Bruce Willis ter esta conversa com um produtor:

– Explique lá a sua ideia, sr. Willis.

–  É muito simples. Um meteorito vem em direcção à Terra. Eu sou um especialista em perfuração e vou tentar desviá-lo.

– Senão, o meteorito acerta em cheio da Terra e destrói a humanidade?

– Senão faz uma razia à Terra. Não acerta, mas causa uma grande ventania e despenteia a humanidade. O meu sacrifício é especialmente altruísta uma vez que sou careca. O filme chama-se “Armagedinho”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Como inimigo da humanidade, o coronavírus é pouco sexy. Não nos dizima, não nos obriga a pegar em armas, não nos come vivos. Faz-nos ficar em casa a conviver com a família. Não é bem um vilão, é uma avozinha. Por isso é que isto está a ser tão difícil. Mais do que valentia, exige-nos paciência. E é preciso ter mais coragem para ser paciente do que para ser valente. Qualquer pai não hesita em atirar-se para a frente de um crocodilo que está prestes a abocanhar o filho, a não ser que o filho esteja há três horas a cantar o Baby Shark. Diz-se que a paciência tem limites, nunca se diz isso da coragem.

Esta Covid, não acabando com o Mundo, faz a segunda pior coisa: muda-o. Nada voltará a ser como dantes. Da mesma forma que a SIDA mudou a forma como temos relações sexuais, o 11 de Setembro mudou a forma de viajarmos ou o Tinder mudou a forma como temos relações sexuais quando viajamos, a Covid vai alterar a forma como nos relacionamos uns com os outros.

Hoje saí à rua e já notei os primeiros sinais. Cumprimentei os vizinhos e conhecidos com quem me cruzei, mas fi-lo sempre à distância, com poucas palavras e com vontade de acabar depressa a interacção. Não escondo que tenho um bocadinho de medo de outras pessoas. Sinto uma desconfiança que não tinha antes. Passei a achar que qualquer pessoa que se aproxima de mim pode ser quem me vai lixar a vida. Isso, mais as bichas ordeiras em supermercados com prateleiras vazias, faz-me sentir que vivo na Alemanha de Leste dos anos 80. A diferença é que, em vez de um informador da Stasi, o vizinho que me pode lixar é portador do coronavírus. E, como na Alemanha de Leste, o traidor também pode ser um dos meus filhos. Aliás, estou convencido que aqueles balões de ranho que o mais novo faz ao respirar, são de propósito.

O único ponto positivo disto tudo é que agora, quando chego ao pé de um grupo de pessoas em que só conheço uma, não há aquele momento embaraçoso em que dou um aperto de mão ao meu conhecido e não sei o que fazer em relação às pessoas a quem não fui apresentado – provavelmente porque o meu conhecido não se lembra do nome delas. Com Covid é tudo corrido a acenos de cabeça. Sempre retira um bocadinho de ansiedade.