Há uns anos, em Hamburgo, num jantar animado entre colegas, uma amiga alemã, que fora mãe recentemente, contou que no seu trabalho como médica cirurgiã, num departamento maioritariamente masculino, não tinha sentido que os colegas tivessem mudado a forma como a tratavam depois de ter sido mãe. As discussões de casos, a distribuição de cirurgias, as conversas no bloco, mantinham-se como anteriormente. Só uma coisa se tinha alterado: quando saía mais cedo para ir buscar a filha, notava a troca de olhares e os sorrisos de condescendência entre os colegas, a maior parte deles também com filhos. Alguns colegas saíam à mesma hora para jogar ténis ou squash, acontecimentos mais tarde relatados ao pormenor durante as longas horas das cirurgias. Aquilo incomodou-a até experimentar dizer “vou jogar golfe, até amanhã”. Rapidamente, voltou a ser “one of the boys”. Infelizmente, sem handicap.

Em Portugal são poucos os que saem para golfe ou ténis. Somos dos países em que se trabalha mais horas por dia – nem por isso mais produtivos. Muitas reuniões são marcadas para o fim da tarde, ou mesmo para a noite. “Se puder, não faz mal se não estiver presente”. Mas enfim, não se pode esperar participar nas decisões se não se está presente. E quem não está presente é, maioritariamente, quem não pode porque tem responsabilidades familiares e domésticas.

Na lista dos cem nomes propostos por Rui Rio para as autárquicas há noventa e sete homens e três mulheres. Existirão apenas três mulheres sociais-democratas com competências para gerirem autarquias? Ou não terão as mulheres estruturas de apoio que lhes permitam estar em igualdade de participação? São as mulheres que não querem participar na vida política ou é a estrutura política que as afasta, que as empurra para cargos não executivos? As estruturas partidárias foram desenvolvidas por homens e continuam a funcionar como clubes masculinos. Um estudo sobre a representação feminina na política, desenvolvido por Ana Ribeiro, no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa,  evidencia a diferença de representação feminina entre a Assembleia da República, Parlamento Europeu e Autarquias locais, onde impera a Lei da Paridade de género, e os contextos onde esta não se aplica, nomeadamente aos cargos executivos das Câmaras (estudo também referido no artigo do DN de dia 10 de Março de 2021). No mesmo estudo, um dos factores associado à participação das mulheres na vida política é o do apoio familiar e de pessoal doméstico que lhes permite disponibilidade para essa actividade, ou similares. Porque das mulheres ainda é esperado o apoio familiar que faz delas as cuidadoras principais.

Dos 308 municípios existentes nas autárquicas de 2017, 32 elegeram mulheres, são apenas 10,4% dos autarcas – a aritmética é simples. Das 308 autarquias, 243 nunca elegeram mulheres para este cargo. Com raras excepções, as mulheres eleitas iniciaram o seu percurso político cedo, integradas em estruturas locais e apoiadas pela família.

Portanto, mulheres com filhos e sem rede de apoio não podem candidatar-se. Isto empurra a mulher para fora dos lugares executivos e retrata, como refere Eugénia de Vasconcellos em Camas Politicamente Incorrectas, o modelo ainda vitoriano do feminismo: branco, anglo-saxónico e de classe média e média alta, conforme preconizado, então, por Harriet Taylor. As mulheres podiam trabalhar fora, em locais públicos, se um número adequado de criadas garantisse o bom funcionamento doméstico e o cuidado dos filhos. Se já não servia no século dezanove…

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