O congresso do CDS gerou animado debate sobre a importância da ideologia. Não é a primeira vez. Provavelmente, também não a última. Afinal… tudo o que existe é debatido.

Discutem-se diferentes planos: se a ideologia é ou não é; se há ou não há; se é útil ou prejudicial; se ainda serve para alguma coisa; se é mera antiguidade ou tem modernidade; se se lhe é fiel ou se a esquece; se inclui ou exclui; se é compaginável com o pragmatismo ou não; se é laica ou beata; se é presente, futuro ou só passado.

Todos estes ângulos ecoaram, ora por actores do CDS, ora em comentadores. Muitos destes não compreendem o debate: sendo externos, não assimilam a importância para os que são CDS. Por vezes, escarnecem. Li, por exemplo, vergastar a economia social de mercado como “uma das expressões mais bafientas da ciência política” e ridicularizada como “socialismo beato”, o que só pode atribuir-se a pouco estudo e muito preconceito. A economia social de mercado – dela ouvimos ecos sempre que se fala da Auto-Europa – é uma sábia construção da democracia-cristã alemã no pós-guerra. Por isso, hoje, todos sabemos, a economia da Alemanha é a mais atrasada da Europa e uma das piores do mundo; e, por isso também, esse bafio foi alçado a modelo a seguir pelos Tratados europeus. Já é menos compreensível que dirigentes do CDS começassem por desdenhar do debate, embora acabassem – bem – a produzir, para a “paz de Lamego”, fórmulas interessantes – e correctas – de equação do problema e do caminho.

A linha típica destas polémicas é exaltar os “pragmáticos” e fustigar os “ideólogos”, atacando-os por “desenterrarem” como “arma de arremesso” uma questão “irrelevante e sem interesse”. O debate mostra, porém, que foi o contrário: foram os “pragmáticos” que, lançando o discurso de emprateleirar a “ideologia” em favor de um indistinto catch-all party, provocaram a discussão. A dúvida não nasceu de uma iniciativa dos “ideólogos”, mas do anúncio dirigente de uma mudança: antes, o CDS seria uma coisa e, por isso, era pequeno; agora, querendo ser grande, precisaria de ser outra coisa. A tirada mais pitoresca é deste tom: “a ideologia não põe pão na mesa”. [Soam as palmas.] Não é verdade. A ideologia, dependendo de qual, põe pão na mesa; e também tira.

Revejo-me bem na “paz de Lamego”, que celebrou, em modo Adriano Moreira, a “democracia-cristã como eixo da roda”. É a matriz referencial comum, comportando diversas sensibilidades, nomeadamente mais conservadoras ou mais liberais. Isto corresponde ao que penso e fui escrevendo em diferentes momentos da minha vida. Entendo a democracia-cristã nem tanto como ideologia, mas doutrina: não é um sistema de ideias imperativas de que resultam directamente as soluções para tudo; é um sistema de valores e um quadro de princípios, de que resulta uma determinada tábua de leitura da realidade humana e social e uma carta inspiradora para a acção política, cultural, cívica e social. Por isso, mesmo que as ideologias tivessem morrido – o que nem creio ser verdade – isso não afecta a democracia-cristã, porque é de outra ordem. Pode é ser abandonada, porque não se acredita nela; mas isso é outra questão.

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No CDS, a democracia-cristã foi um acontecimento. Não resultou da decisão de ninguém para obter um pré-determinado resultado, uma certa consequência. Sim, é possível ler a democracia-cristã nas entrelinhas da Declaração de Princípios de 1974, mas a palavra nunca lá aparece. Sim, está fixada no artigo 2º dos Estatutos, mas não foi determinado “pronto, a partir de hoje, somos democrata-cristãos e não se fala mais nisso.” Sim, o programa partidário vigente, que data de 1993, é a sua afirmação mais explícita, mas isso foi mais consequência daquilo que já era do que a causa do que veio a seguir. A democracia-cristã aconteceu na esteira da formação dominante dos dirigentes do CDS e por força das circunstâncias. Pesou muito a relação cedo estabelecida, ainda em 1974, com a União Europeia e a União Mundial da Democracia-Cristã – uma relação estreita e fecunda. O pensamento democrata-cristão inundou-nos, incluindo o sagrado Olimpo europeu: Schumann, Adenauer, De Gasperi. O CDS desenvolveu-se nessa relação: se éramos democratas-cristãos europeus, éramos democratas-cristãos portugueses. Foi factor distintivo impressivo:  havendo dois partidos à direita do PS e sendo um deles (o PSD) um catch all-party, o CDS ter uma doutrina era diferenciador. É por a democracia-cristã ser um acontecimento que assentou no CDS e não uma invenção ou engenharia, que se explica que o debate, agora, fosse colectivo, natural, não a cavalgada de um tenor. Houve muitas vozes; isto é que foi significativo.

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Este debate resvalou por duas escorregadelas. Uma, confrontar ideologia e pragmatismo. Outra, contrapor ideologia e resposta aos problemas das pessoas. Ir por aí é assumir dois disparates grosseiros. Em rigor, só pode ser pragmático quem tem ideologia. Só quem sabe o que quer pode intuir o caminho mais prático para avançar alguma coisa. Por outro lado, é a visão das coisas que nos educa, desde logo, a sensibilidade à própria existência dos problemas; e modela-nos, a seguir, os modos de lhes responder. As ideologias também constam disso. Um pragmático sem norte é um oportunista. Um dirigente sem visão, nem tábua de leitura é um desorientado: não percebe, nem resolve.

Da minha experiência política, acabei por concluir, ao contrário dos pé-ligeiro, que a ideologia é mesmo das poucas coisas em que podemos confiar – se nos falam a verdade, como é evidente. Digo sempre aos eleitores que acreditem somente em duas coisas e se foquem em descobri-las: uma, o carácter e a competência dos candidatos; outra, as ideias que professam. Tudo o mais é distracção ou ilustração. Se é distracção, não interessa; não passa de espectáculo de campanha. Se é ilustração, interessa, na medida em que nos permite decifrar as ideias por dentro e por detrás. Um programa eleitoral importa mais pelas ideias que ilustra do que pelo que lá está escrito. As medidas poderão ser seguidas, ou não: depende de maiorias, de circunstâncias, de prioridades, de compromissos talvez necessários, de imprevistos que se sobrepõem ou mudam tudo. Onde o eleitor poderá não se sentir defraudado é se depositou a confiança no carácter (gente séria que vai dar o litro para cumprir), na competência (gente que sabe como fazer) e nas ideias (gente que pensa como nós em núcleos fundamentais). São estas ideias, a ideologia, que guiarão os eleitos em todos os imprevistos, em todos os atalhos, em todas as curvas e contra-curvas, em todos os embates para fazer avançar um projecto político ou concretizar determinadas medidas significativas. São as ideias que determinam tudo o não-escrito; e, na caminhada de médio e longo prazo, o não-escrito é o mais importante.

A ideologia – ou a doutrina – é a garantia de não nos darem gato por lebre. Por isso, é tão importante que no-la esclareçam, que nos digam claramente a que mundo pertencem. Há ideias, de facto, fundadoras de grandes escolhas políticas, de sistemas económicos, de modelos sociais. E, nos mais diferentes planos, existem ideologias cruzadas, instrumentais para outras escolhas: liberdade de ensino ou império da escola do Estado; finanças equilibradas ou endividamento consecutivo; só SNS ou sistema nacional de saúde; descentralização ou centralismo; federalismo europeu ou União; exigência no ensino ou facilitismo; salários baixos ou elevação do padrão; sobrecarga fiscal ou tributação moderada; consideração da família ou atomização; respeito dos reformados ou transferência para estes dos riscos do sistema; etc. Perante tudo, é fundamental que nos elucidem sobre a luz que os guia e o critério que preside às suas avaliações e decisões. Só aí devemos confiar. Porque isso é que vai durar, isso é que vai valer.

Nenhum partido existe sem ideias e, portanto, sem uma ideologia. O que por vezes se torna difícil é descobri-las; e arrumá-las. Um partido que não se explica ou não se une por ideias, só pode explicar-se e unir-se por interesses. Seja por “interesses de classe”, como a esquerda lê a direita, seja por outros interesses. Na falta de cimento ideológico ou do sedimento doutrinário, os partidos têm de recorrer exclusivamente a fortes lideranças pessoais ou teias de grupo. Sem ideia clara, sem pertença de alma, sem critério identificador, correm o risco de tornar-se apenas num prolongado saco de gatos, que é a fase problemática em que está o PSD.

Um tempo semelhante seria muito mau para o CDS, mas é muito mais difícil para o PSD, dados os caminhos por onde se meteu: como é que se resolve o nó cego de ser social-democrata o partido que representa a maior parte da direita? Como é de centro-esquerda o partido que é o maior representante de Portugal na maior família da direita europeia?

Estes arrastos do PREC já deviam ter sido resolvidos há muito. Nos primeiros anos do CDS, na rivalidade CDS/PSD, eu tinha um estribilho muito popular em casa, embora pouco entre os vizinhos. O estribilho dizia assim, na linguagem da época: “Se o socialismo é o caminho para o comunismo e a social-democracia é o caminho para o socialismo, será que a social-democracia é caminho para o comunismo?” E quando, com audiência favorável, se passava da inocente pergunta para a questão seguinte, a casa vinha abaixo: “Poderia Lenine ser PSD?” – Lenine era do Partido Operário Social-Democrata Russo, onde fez a fractura bolchevique contra a minoria menchevista. Não são, de facto, identidade e histórico facilmente geríveis por quem se senta ao centro e à direita.

O CDS não tem esse problema. Tem outros, mas não tem esse. Seria um erro que, não resolvendo os problemas que tem, fosse importar o que não tem. O correcto é sedimentar sempre um forte tronco de pensamento e tornar cada vez mais nítido como é inclusivo, aberto, robusto, inspirador, desafiante.

Caminhou-se para uma síntese, positiva. Resta ver de que eixo da roda se fala: se o eixo da roda que anda; se o eixo da roda do carrinho de mão onde se põe a cangalhada, antes de fechar tudo na cave. Só o tempo dirá. Um ponto importante será o esclarecimento da agenda CDS para a “nova economia”. É preciso conhecer o concreto deste poderoso anúncio: “Temos de actualizar o modelo social face à nova economia.” O Papa Francisco, sempre muito convocado, teve outra frase poderosa: “Esta economia mata.” Olhando atrás, o século XIX abriu com a entrega do modelo social à nova economia do tempo. Daí nasceram, como reacção, o socialismo e o comunismo. E, no fim do século, a democracia-cristã, em resposta aos problemas das pessoas.

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A direita tem, em Portugal, um problema muito sério. Apesar de grandes derrotas históricas, apesar do fracasso do socialismo do século XXI – como já haviam fracassado o do século XX e o do século XIX –, apesar do endividamento, apesar do ocaso dos amanhãs que cantam, a esquerda reconstruiu reitoria ideológica em Portugal. Foi um pequeno partido que o fez: o Bloco de Esquerda.

Quando nos perguntamos quem tem sido o principal vencedor em Portugal nos últimos 20 anos, a resposta honesta e verdadeira só pode ser: o BE. Aborrece, mas é verdade. Um punhado de pessoas inteligentes, ideologicamente arguto, colou diferentes partes num movimento político, que cercou o PCP, colonizou uma ala do PS, alagou os meios de comunicação e centros de opinião, captou seguidores e condiciona não só a esquerda, mas o centro e boa parte da direita, marcando agenda, conquistando votos, ampliando influência para além dos votos. O Bloco é uma espécie de o reitor ideológico da malta. Na verdade, uma proeza. A mostrar que as ideologias não estão mortas. Precisam é de, como em tudo, gente que saiba o que anda a fazer.

Pena que a direita tenha desertado do combate nos últimos vinte anos. Isso, junto com a porta giratória dos interesses, explica que a direita, depois de ter avançado até 1995, tenha decaído sempre desde 1998 – em vários planos e frentes de consideração. Para não irmos mais longe e mais fundo, o que se passou com a troika e o pós-troika é absolutamente confrangedor. A direita perde, porque confunde realização com poder, porque se entretém pelas bordinhas e nas circunstâncias, porque troca o profundo pelo imediato, porque não define rota, nem vai à luta. Ideologia, precisa-se.