Custa chegar a uma repartição pública e dar de caras com um funcionário mal disposto e sem paciência, mas acontece com frequência. Também é bizarro passar horas a fio em lojas do cidadão e, depois de longas e penosas esperas, ter que aturar gente que acha que ganha mal e nos faz pagar por isso.

Apanhar um taxista agressivo é um castigo que nenhum cliente merece; entrar numa loja onde nos tratam com sobranceria e arrogância é incompreensível, pois também estes vivem do nosso dinheiro; ir a um café, bar ou restaurante onde nos ignoram ou atiram tudo (palavras, pratos e copos) com maus modos é mau demais, mas ter que suportar de pé uma fila demorada para finalmente ser chamado a um balcão comercial onde também não nos podemos sentar, e somos atendidos no limite da resistência, é demolidor.

Hoje em dia obrigam-nos a permanecer de pé em postos de atendimento público de operadoras de telecomunicações, sem espaço nem condições, nas estações de Correios e em mil e um balcões onde o serviço parece todo feito em câmara lenta e o pesadelo máximo é estar quase a chegar o nosso número de senha e … o funcionário olhar para o relógio e desaparecer sem dizer uma palavra.

O pior de tudo sempre foi e será o mau atendimento em situações de maior fragilidade, seja em tribunais ou hospitais. No balcão das urgências, nos corredores das unidades ou nas enfermarias das especialidades, onde entregamos literalmente a nossa vida nas mãos de médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde, esperamos tudo menos ser tratados de forma áspera. Infelizmente acontece. E não são poucas as vezes.

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Por questões familiares passei a semana de Páscoa no hospital. Mais uma vez tivemos a sorte de apanhar os melhores profissionais no INEM, que socorreram a tempo e foram verdadeiros salva-vidas. Antes destes homens e mulheres que todos nós, os que temos pais mais velhos e mais frágeis, vamos conhecendo episodicamente em ambulâncias, também fomos impecavelmente atendidos ao telefone pelos profissionais da Saúde 24, que até hoje nunca falharam um diagnóstico nem perderam tempo inutilmente.

Desta vez as coisas estiveram negras, mas graças à comparência imediata e à extraordinária competência das equipas das VMER – Viaturas Médicas de Emergência e  Reanimação – a intervenção pré-hospitalar foi determinante e impediu que o pior acontecesse. Na urgência, em plena Semana Santa, também só encontramos médicos e enfermeiros extraordinários. Isto, apesar das férias de Páscoa e de notoriamente haver menos efectivos ao serviço.

Há uma erosão própria do tempo passado nas urgências, entre gabinetes de reanimação, corredores e salas onde ninguém dorme nem descansa porque não há mãos a medir e a agitação é perpétua. Juntam-se no mesmo espaço homens e mulheres de todas as idades, origens e condições, cada um com a sua patologia, todos eles em estado grave e a necessitar de intervenção urgente. Uns gritam, outros gemem e todos reclamam atenção e cuidados. Os médicos, enfermeiros, auxiliares, bombeiros e maqueiros circulam por entre esta multidão de aflitos com ciência e precisão, mas não conseguem chegar a todos ao mesmo tempo. Impressiona ver a maneira como uns e outros sobrevivem. Falo de doentes e profissionais de saúde.

Vencido o desafio de vida e de morte desta espécie de hospital de campanha em que se convertem os serviços de urgência dos grandes hospitais públicos, começa outro calvário: ser transferido para uma enfermaria. Nem sempre existem vagas e há que esperar (desesperar talvez seja o verbo exacto) na maca que foi posta num corredor ou acomodada entre portas. Quando finalmente dão ordem para avançar, renasce a esperança. Com sorte, a equipa que recebe o doente que vem massacrado pelo cúmulo de sofrimentos, picadas, insónias e esperas, é composta de profissionais que exercem a função por vocação.

Aconteceu mais uma vez, desta vez. Enfermeiras, médicas, assistentes e voluntários foram a maior benção que podíamos ter. Atenciosos, bons comunicadores, disponíveis e, acima de tudo, excelentes profissionais. Fica-se mais descansado, embora o quadro clínico ainda esteja longe de ficar estabilizado. Devagar, as coisas vão evoluindo e parecem estar no bom caminho. Até ao momento em que voltamos a esbarrar na antipatia de uma figura de bata branca que, vá-se lá saber porquê, decide tratar velhinhos e velhinhas doentes com secura.

Na enfermaria há senhoras com demência, mulheres semi paralisadas que respiram a muito custo e passam as noites e os dias de boca aberta, pessoas muito doentes e muito dependentes que ninguém visita, gente que sofre de dores e solidão, utentes que parecem esquecidas, mas não se queixam nem dizem uma única palavra, apenas observam, com olhos por vezes rasos de lágrimas. Todas estas mulheres estão muitíssimo frágeis e carentes. A senhora do fundo geme durante todas as horas em que está acordada. A do lado não é visitada e passa o tempo a girar devagar a manivela que faz subir e descer o tabuleiro onde pousam as comidas, e eis que chega uma rapariga de uniforme branco e desata a ralhar com uma e  outra.

Quando menos se espera, a enfermeira de turno prega um sermão à senhora que geme e não sai da mesma posição (a não ser que a vão reposicionar). Ralha porque ela deixou cair a tábua onde apoia um dos braços, mas é óbvio que para ela, esta tábua é impossível de segurar. Choca ouvir o ralhete, porque tudo nos dizia que estava a chegar alguém para cuidar, proteger, ajudar e, até, mimar.

À terceira senhora velhinha não ralhou, mas também não lhe disse nada simpático.  Limitou-se a pousar os comprimidos na mesa-tabuleiro que tinha na sua frente e virou as costas, deixando-lhe o copo de água vazio.

– Senhora enfermeira pode dar-me água, por favor?

– Tem ali a torneira.

E indicou o lavatório onde ela própria lavava as mãos antes de se retirar do quarto.

A torneira não só não estava ao alcance da mão, como era preciso levantar-se da cadeira (a senhora em questão, tinha 82 anos e esteve sucessivos dias a oxigénio), ir pelo seu pé encher o copo, voltar a sentar-se e tomar os ditos comprimidos. Estranha forma esta de cuidar dos mais vulneráveis. Assim como nos impressionam os simpáticos e dedicados, que oferecem infinitos cuidados a quem vive num quadro de verdadeira miséria humana, também surpreende a forma agreste como os antipáticos e mal humorados se dirigem aos que sofrem. Indigna ver maltratar doentes e negar um copo de água a quem necessita dele para tomar comprimidos. Escandaliza e gera perplexidade, pois nem se percebe a ideia.

Foi preciso perguntar.

– Se esta senhora fosse a sua mãe, não lhe enchia o copo de água?

A enfermeira parou e percebeu. Realizou o impacto do gesto e, honra lhe seja feita, emendou a mão.

– Gostamos de promover a autonomia dos doentes e sempre que eles podem fazer coisas, deixamos que sejam eles a fazer.

A justificação até poderia fazer sentido, mas precisava de ser explicada, pois a senhora velhinha não só não percebeu a frieza da enfermeira, como se sentiu castigada sem ter feito absoutamente nada. Castigada por existir, por estar doente e por ter sido internada na enfermaria onde esta enfermeira trabalha.

A partir deste breve diálogo a enfermeira passou a ser quem certamente é. Digo isto porque podia ter ficado ainda mais castigadora, mas não. Simpática, educada e competente, cumpriu o resto do turno e das suas funções com a elevação que era esperada.

Nada justifica a má cara e os modos cortantes. Mas se por acaso existe justificação ou, pelo menos, enquadramento possível para atitudes agressivas e incompreensíveis, então é preciso começar por aí. Importa-se de explicar?