Em O Mandarim, Eça de Queirós dedica-se ao famoso «paradoxo do mandarim» inaugurado em 1802 por Chateaubriand numa certa passagem do Génie du Christianisme (Livro VI, cap. 2, dedicado ao remorso e à consciência moral: «Si tu pouvois par un seul désir, tuer un homme à la Chine, et hériter de sa fortune en Europe, avec la conviction surnaturelle qu’on n’en sauroit jamais rien, consentirois-tu à former ce désir?»). Inspirado por esta delicada questão acerca do cumprimento do dever moral na ausência de uma punição por parte de um qualquer voyeur, humano ou divino, Eça dá vida a um monótono amanuense do Ministério do Reino chamado Teodoro que, vivendo numa pensão com uma D. Augusta e um ordenado pouco augusto, compra um dia numa feira da Ladra um in-fólio onde consta a lenda de um mandarim riquíssimo que vivia «no fundo da China»: ao leitor de tal lenda bastaria que tocasse uma campainha e, enquanto nos confins da Mongólia morreria um perfeito desconhecido, na Travessa da Conceição n.º 106 nasceria um perfeito milionário: «homem mortal, tocarás tu a campainha?». Cedendo à tentação do Diabo («Matar, meu filho, é quase sempre equilibrar as necessidades universais. (…) O assassino é um filantropo!»), Teodoro toca a campainha e fica rico: nos confins da Mongólia limita-se a morrer um homem que Teodoro nunca viu.

Teodoro matou de facto o mandarim? Matar um ser humano ao longe, matar um ser humano que não se vê será de facto matar um ser humano (compare-se esta morte mágica, incorpórea, com as pungentes hesitações de Tchen, de navalha na mão, naquelas terríveis e febris primeiras páginas de A Condição Humana de Malraux: «Um único gesto, e o homem estaria morto. O matar não era nada; o tocar é que era impossível.»)? Teodoro, o anti-Tchen, não tem remorsos: a morte que provocou é tão quimérica como a riqueza de que tomou posse. Teodoro tocou uma campainha e magicamente terceirizou as mãos sujas que lhe mantêm a consciência limpa. Teodoro tocou uma campainha e magicamente terceirizou a sua consciência moral. O Mandarim de Eça de Queirós é uma novela cujo subtítulo bem poderia ser: Ou o Outsourcing da Consciência Moral. O cometimento do crime e o apagamento do crime são uma e a mesma coisa.

Teodoro somos nós sempre que tocamos esta campainha mefistofélica. E que campainha é esta cujo efeito mágico consiste, antes de tudo, em dar a nós mesmos o conforto ilusório da terceirização, da subcontratação da nossa consciência moral e social? Esta campainha é o Estado fiscal dos Teodoros contemporâneos. O pagamento de impostos (mesmo admitindo, já que estamos no domínio do fantástico queirosiano, que imposto não é roubo porque a subtracção-de-propriedade-alheia-em-proveito-próprio-ou-de-terceiro-com-recurso-a-violência-ou-grave-ameaça-a-pessoa não é sinónimo de roubo, perdão, imposto) funciona justamente como esta campainha terceirizadora: nós queremos, como Teodoro, tocar a campainha; não queremos, como Tchen, espetar a navalha (parafraseando Tchen: o pagar impostos não é nada; o ajudar o próximo é que é impossível). Ainda por cima, a campainha, objecto limpinho e não perfurador da miséria alheia, tem a vantagem suplementar de emitir o som da nossa exibição de virtude. Queremos que a nossa virtude se faça ouvir. De que serve afinal uma virtude inaudível? Uma virtude que não se faz ouvir é como a árvore que cai na floresta sem ninguém por perto: será que faz algum som?   

Os impostos são a socialização dos custos de convivermos mal com a nossa consciência individual que nos impõe o dever de ajudar o próximo de forma indelegável. Os impostos, por baixo de todo o verniz retórico que se esforça por legitimar a sua necessidade, são apenas o miserável outsourcing da nossa responsabilidade moral: pagamos impostos não porque nos sentimos moralmente responsáveis pelo bem-estar dos nossos semelhantes, próximos ou longínquos: pelo contrário, pagamos impostos para não sermos responsáveis, pagamos impostos para que outros sejam responsáveis por nós, pagamos impostos para termos substitutos de responsabilidade social, para termos mordomos morais.

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Não pagamos impostos para podermos assumir responsabilidade social: pagamos impostos para que nos dispensem dessa responsabilidade. Pagamos impostos, no fundo, como pagamos para que nos lavem as escadas do prédio ou nos recolham o lixo da rua. Porque não queremos ser nós a fazê-lo (quantas vezes ajudar o próximo não é, literalmente, sujar as mãos?). Os impostos não são o preço a pagar para fazermos o bem: os impostos são o preço que estamos dispostos a pagar para que outros o façam por nós. O Estado é, portanto, a campainha que, uma vez tocada a mando do nosso demónio interior, nos demite e alivia do peso da responsabilidade individual – externalizando-a, terceirizando-a, expiando-a – pela sorte dos mandarins que nunca vimos. Afinal, como Teodoro, só tocámos uma campainha e, magicamente, apareceu dinheiro: nem ele matou o mandarim nem nós roubámos o contribuinte.

Os impostos, os dízimos da fé jacobina, as novas indulgências secularizadas por via do pagamento das quais julgamos ganhar poltrona e aposento, presentes e futuros, no paraíso das boas almas, são apenas o veículo através do qual pretendemos transferir para outros a nossa própria (insisto: indelegável) responsabilidade moral, dando assim satisfação à nossa necessidade, não de ajudarmos o próximo, mas de não nos sentirmos mal com a nossa consciência pelo facto de não ajudarmos o próximo. Na verdade, é por nossa causa que pagamos impostos, não por causa dos outros, muito menos por causa dos mais necessitados. Nós somos os mais necessitados dos impostos que pagamos.

É, portanto, apenas a nós mesmos que pagamos os impostos que pagamos aos outros. Pagar impostos é lavar as mãos como Pilatos, célebre colector de impostos. E generosidade não passa do nome cómico que damos à água suja do banho que, mesmo estagnada, nos devolve ainda o triste reflexo do egoísmo sublimado no rosto de um canalha. Generosidade compulsória é um minotauro moral: uma aberração cuja existência é não apenas mitológica, mas mitómana. Os impostos não são a medida da nossa solidariedade: pelo contrário, são a medida da nossa falta dela. São a medida da nossa indiferença pelos outros. Nunca, em lado algum, a inexistência de um imposto dispensou ou impediu os seres humanos de serem solidários uns com os outros e responsáveis pelos seus mais desfavorecidos. Mas a existência de um imposto já. Directa e indirectamente. Sistematicamente. Os impostos são a lenta, mas implacável erosão do nosso sentido de comunidade e de responsabilidade. Não é o individualismo, mas a desresponsabilização, que atomiza a sociedade. E nada atomiza tão eficientemente como a máquina fiscal, à distância de uma campainha. Toda a solidariedade termina onde começa um imposto: «homem mortal, tocarás tu a campainha?».