Este ano a ceifeira negra não para de nos rondar a porta, levando com ela alguns dos mais próximos e mais queridos Amigos e companheiros de ideias e combates. No princípio da Primavera, foi o Vítor Ribeiro; agora, quase no fim do Verão, o Ernesto Moura Coutinho.

São memórias de 55 anos as que nos unem: de Outubro de 1963, quando nos conhecemos e ficámos amigos, até hoje, até sempre. Memórias de tudo e também de convicções partilhadas e das consequências dessas convicções – exílios, prisões, vidas desfeitas e refeitas (a esquerda não tem o monopólio destas coisas, como o não tem da inteligência ou  da coerência).

Do muito que fica por dizer porque é de cada um e porque não tem, nem deve ter, palavras,  há um aspecto da vida do Ernesto que  gostava aqui de partilhar. Por um dever de profunda amizade e gratidão mas também porque teve importância na vida pública, política. Faz parte de uma história pouco conhecida, quase secreta, ou mal contada: a história da Direita e das direitas em Portugal nos últimos cinquenta anos. Falo da direita ideológica, intelectual e política, que nada teve ou tem que ver com as caricaturas que dela fazem, por ignorância ou má-fé; ou também, reconheça-se, porque a maioria dos interessados e protagonistas se calaram e calam. Histórias que fazem parte da história de uma minoria de resistência e de oposição.

Desde os anos sessenta do anterior regime que a esquerda tinha a hegemonia intelectual e cultural; e com o 25 de Abril, passou também a dominar o Estado. A direita desapareceu então da vida política e foram os vencedores, como é norma, que escreveram as histórias e a História.

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Os grupos que nos anos 60 e 70 constituíram o embrião do pensamento nacional-revolucionário em Lisboa, em Coimbra e no Porto, e que protagonizaram a resistência ao comunismo e ao modelo de descolonização (que sabíamos que iria ser trágico), dispersaram-se. Parte dos seus militantes integrou-se nas formações político-partidárias oficiais. Por isso, a história da direita passa muito pelas publicações, pelas revistas. E é, também ela, contada pelo outro lado. Com excepção dos livros de Ricardo Marchi, um emigrado italiano que tem vindo a descobri-la e a revelá-la, de algumas referências em trabalhos do António Araújo e de uma ou outra memória solta, continua a ser uma história desconhecida.

O Ernesto Moura Coutinho esteve nessa história desde o princípio; desde que, em meados da década de 60, entrámos para o jornal Agora, procurando dar-lhe um ar mais “civilizado” e “doutrinário” mas, sobretudo, a partir da fundação da revista Política, no Outono de 1969. Eu dirigia a revista,  escrevia, escolhia e contactava os colaboradores e tratava de encontrar os apoios financeiros, mas quem geria as contas, se ocupava da logística, das assinaturas, de todo o lado jurídico-financeiro que implicava a publicação era o Ernesto. Como era ele quem punha alguma disciplina e algum controle naquilo que era ainda um bando de adolescentes convencidos de que iam fazer uma revolução ou salvar o Império. Ele e o António Maria Pereira e Cunha Pinheiro Torres  tomavam conta desse lado ingrato, administrativo, invisível para o exterior mas essencial. Não era o Napoleão que dizia “Tout va bien si l’Intendence suit”?

Quando veio o 25 de Abril e a partir do 28 de Setembro de 1974, quando a maioria da nossa gente passou para as listas de “proscritos” e foi perseguida, saneada e presa, o Ernesto foi incansável, como advogado, a defendê-la, sempre pro-bono. E a defender também aqueles que, não sendo propriamente “dos nossos”, ninguém  queria defender –  antigos ministros do Estado Novo e funcionários da PIDE. Ele e a Teresa foram essenciais nesse tempo. Eu estava fora, com a Zezinha, no exílio, entre a África do Sul, o Brasil e a Espanha, mas sei que foi assim. O Ernesto também nos ia ver a Espanha, e também ia tratando dos nossos assuntos cá. Foi ele quem se ocupou da edição em Portugal do meu primeiro livro,  Portugal os Anos do Fim, editado pelo Dr. Valdez dos Santos do Economia e Finanças.

Quando lançámos o Futuro Presente, em 1980, repetiu-se a história. Fizemo-lo sempre a contar com ele, com o seu conselho, com a sua lucidez, com os seus pés bem assentes na terra, acompanhados de uma generosidade e de um idealismo que ele, fazendo-se passar por “realista”, sempre quis disfarçar.

O Ernesto era da nossa geração, da nossa tribo,  parte integrante da nossa história e da nossa aventura. Discreto, confiante, confiado, era aquele Amigo com quem se conta sempre, aquele amigo a quem se recorre, a quem se conta uma situação difícil, qualquer que seja. E que se antecipa, que vem ter connosco nos piores momentos. Quando, nos anos oitenta, por um mal complicado e nunca diagnosticado, fui parar à Unidade de Cuidados Intensivos de Santa Maria, por onde andava entubado numa cadeira de rodas de exame para exame, quem me apareceu no corredor, disfarçado, enfiado numa bata branca de médico mas sempre a fumar o seu cigarro, foi o Ernesto.

A notícia fatídica chegou-nos há um ano, sempre terrível de ouvir; uma notícia que, apesar dos avanços da medicina e da quantidade dos que se tratam, curam e continuam vivos e sãos, sempre nos gela. Cancro. Cancro do pulmão. Fui-o vendo, fomos falando, fui-o visitando, não as vezes que poderia, deveria e gostaria, mas as vezes que a exigência da  maldita vida profissional me não roubou.

O Ernesto era um homem de convicções e era um homem de fé, de muita fé. Foi essa fé e uma família e amigos dedicados, que fez e de que soube sempre cuidar, que o acompanharam.

A última vez que o vi foi na terça-feira, 28 de Agosto, na sua casa do Restelo. Estava lúcido, embora falasse pouco e por vezes ali estivesse como se já não estivesse ali. Foi ao fim do dia. E os fins de dia lembram-me sempre a Transfiguração,  um passo do Evangelho de que a Zezinha também gostava muito:

E Pedro, que com Tiago e João, acompanhara Cristo à montanha onde ele conversava com Moisés e Elias,­diz-lhe: “Senhor, é tão bom estarmos aqui! Se quiseres vou levantar três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias”…

Nesse fim de dia, quando saímos cá para fora, com o Tejo por perto na tarde nublosa, tive o pressentimento de que a noite ia cair sobre nós, ou de que a nossa forma de estarmos juntos no tempo ia mudar, de que ele ia partir, talvez para uma dessas tendas preparadas para os justos pelo seu e nosso Criador num Além misterioso.  E que era de lá que o Ernesto me ia agora passar a acompanhar; era de lá que me ia continuar a dar o seu bom e lúcido conselho, de cigarro ao canto da boca, logo a rabiscar a solução, logo a desbravar o caminho prático e necessário para resolver o problema.

Conto contigo, Ernesto. Sempre.