A política é, de facto, uma ciência complexa, não só atendendo à sua natureza, mas bem assim como por força dos efeitos que produz. Ora, de entre o acervo de discussões infindáveis que se podem manter em torno deste tema, certo é, que um dos mais interessantes prismas é o da decisão política.

De facto, é este o elemento que gera ordem e desordem no horizonte político quer internamente, no que concerne ao decisor, quer no plano externo, o do recetor da mensagem política. Ciente da importância da questão, o decisor deve, sempre, procurar a coerência e o melhor dos fundamentos para alicerçar a sua decisão política, sob pena de cair no descontentamento que as ambiguidades e a ausência de clarificação geram, tipicamente, nos destinatários da mensagem política.

Posto isto, impõe-se compreender, no caso português, qual é afinal o conteúdo da função política. Para tal, temos por válida e adequada a definição que decorre da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo: “A função política corresponde à prática de atos que exprimem opções fundamentais sobre a definição e prossecução dos interesses ou fins essenciais da coletividade”. Ora, partindo de tão clarificadora noção, pode agora o comum cidadão entender, latu sensu, que a função política se destina à prossecução dos interesses ou fins essenciais da coletividade em que este se insere, devendo, deste modo, sentir-se salvaguardado nesta proteção conceptual.

Aqui chegados, temos presente o peso da decisão política com que todos, querendo ou não, vamos lidando na nossa vida e, agora sim, estamos cientes de que a função política vai ao encontro dos fins últimos da comunidade, o que nos deveria tranquilizar. Assim, para que uma decisão seja política à luz do exposto, deve, necessariamente, cumprir essa orientação teleológica, e, antes de mais, deve, o ato em si mesmo, ser um ato de decisão.

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Numa decisão, temos necessariamente, de um ou outro modo, subjacente a ideia de preterição, de opção, de escolha. No mais primário dos exemplos: quando colocados diante de uma bifurcação, decidimo-nos por um caminho preterindo o outro, não estando fisicamente aptos a percorrer ambos em simultâneo e, ainda que por mera hipótese o pudéssemos fazer, tal excurso já não consubstanciaria uma decisão propriamente dita, posto que nada havia a deliberar sendo que açambarcávamos todas as opções.

Subsumem-se no conceito de decisão, especialmente no de decisão política, a deliberação, o juízo e a posterior escolha que destes resulta, além do que, é da preterição convincente e convicta que o decisor alcança o respeito dos demais pela sua posição enquanto tal.

Se, questionados por direcções para um qualquer local, indicarmos o caminho a Norte, em detrimento do caminho a Sul, a quem nos questiona será substancialmente diferente de afirmarmos “siga para Norte, mas para Sul é o melhor caminho”. Adensa-se ainda mais o problema de tal ambiguidade quando, chegado ao destino, este viajante se encontra com um outro que lhe diz ter recebido indicações, do mesmo indivíduo, em sentido absolutamente oposto. Entre a ambiguidade e a incoerência perde-se a credibilidade e quando as decisões em questão gozam de maior importância, nomeadamente, ao nível governamental, os problemas ampliam e o descontentamento alastra.

Aliás, estranho é o fenómeno em que a ambiguidade e a incoerência que, no plano teórico, debilitam a liderança e, consequentemente, enfraquecem e descredibilizam as decisões políticas, são arbitrariamente usadas a fim de obter, sub-repticiamente, dividendos políticos, não na tradicional aceção do conceito de política, mas sim neste conceito hodierno e medonho em que o sucesso político se converteu numa mescla de popularidade e sucesso eleitoral.

Entre muitos outros que vêm ocupando a atividade política moderna, um bom e flagrante exemplo deste fenómeno palpitante é a decisão do Governo, relativamente à realização da Festa do Avante.

Ao que parece, a dita festa irá realizar-se, assegurando o estrito cumprimento das medidas de segurança estabelecidas, contando somente com umas míseras 33 mil pessoas no recinto.

Estamos de acordo, que esta celebração em nada se confunde com os diversos festivais de verão cancelados, ou outros eventos da mesma sorte – os quais, por mero acaso, também reúnem multidões e atuações musicais –, desde logo porque nenhum deles resulta no financiamento partidário ou, sequer, tem o valoroso cariz de “realização político-cultural” que vem sendo atribuído ao Avante ao longo dos anos e que nesta reflexão não se ousa questionar.

Porém, afigura-se, no mínimo, estranha a posição, em jeito de suporte camuflado, que vem sendo sustentada pelo Governo. Se, por um lado, o Governo podia simplesmente ter afirmado taxativamente o valor que atribui à dita festa, não deixando margem para dúvida sobre a importância da sua realização e deixando claro que a mesma era imprescindível e não teria qualquer efeito nefasto para os registos de infeção do atual quadro pandémico, por outro lado, poderia, como os mais incautos esperariam, ter mantido o discurso de excelência na contenção pandémica e primazia da saúde pública, impedindo categoricamente, à luz do que sucedeu com outros eventos de massas, a sua realização.

Não obstante, nenhuma destas posições foi a escolhida pelo executivo e surgiu uma “inesperada” terceira via de resolução do conflito, a do amigo bem intencionado. Afirmou a Ministra de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva, que: “Fora do estado de emergência, a decisão de organizar a Festa do Avante! ou qualquer outra atividade política é da responsabilidade exclusiva da entidade organizadora, mas as regras têm que ser compatíveis com as regras vigentes. E não haverá qualquer exceção às regras vigentes”, o que nada mais é, senão procurar agradar a gregos e a troianos.

Em suma, permite-se a realização, satisfazendo os apoiantes desta solução, pese embora se apresente esta tomada de posição de tal forma, que pareça pairar no ar a impossibilidade legal de agir noutro sentido, procurando salvaguardar politicamente o Governo de um qualquer ataque da oposição.

Ora, usou o Governo esta posição, incoerente, ambígua e dissonante face a toda a estratégia rigorosa de combate à pandemia, sem que se vislumbre outro objetivo que não a obtenção da tão desejada estabilidade dos atuais acordos parlamentares e uma duvidosa tentativa de resguardo perante a oposição, através dos convenientes amparos constitucionais.

Independentemente do valor ou desvalor da decisão, será esta uma boa decisão política? Deve o Governo agir em função da sua popularidade, socorrendo-se de decisões ambíguas, numa busca incessante do sucesso eleitoral, que inevitavelmente enfraquecem a sua força executiva? Não será, no mínimo, insólito o mesmo executivo que, suportado em princípios constitucionais, implementou a figura de maior supressão de direitos fundamentais que reside na nossa Lei Fundamental – o tão falado estado de emergência –, hoje afirmar que não dispõe das armas legais suficientes para combater a realização de um evento de massas? Tal posição, leva-nos a questionar, ainda que se reconheça a devida dissemelhança, se um dos tão distintos festivais de verão subitamente se associasse a um qualquer partido político e servisse de apoio ao mesmo, tal como sucede com o Avante e o Partido Comunista Português, o que diria o Governo, perante tamanha realização político-cultural?

A discussão paralela sobre o valor da Constituição da República Portuguesa, o seu papel e usos, não a procuramos acalentar, até porque, em nenhum momento, decidir pela não realização de um evento com até 33 mil pessoas, independentemente da sua natureza ou finalidade, numa situação calamitosa como a que vivemos, nos parece resultar numa violação Constituição, mas sim, na prossecução necessária e justificada do interesse público e na realização das garantias dos cidadãos, tal como sempre foi propósito do texto da nossa Lei Fundamental.

A ação política corrente é frágil e o seu valor altamente variável em virtude das motivações que lhe subjazem. Diante de tal debilidade, é imperativa a procura do interesse comum, contrastando com uma qualquer noção de popularidade ou finalidade eleitoral.

Poderá, seguramente, surgir um momento de convergência entre aquilo que realiza o propósito natural da decisão política e o que melhor assegura a estabilidade governamental e o sucesso eleitoral. Ttodavia, em tempo algum podem estes alicerçar a orientação executiva, em detrimento daqueles.

Aí reside a verdadeira complexidade da ação política governamental, na capacidade de decidir como nortear, à luz da sua função, a decisão política. Mais do que escrutinar a decisão concreta sobre a realização da Festa do Avante, deve, sobretudo, procurar-se perscrutar a orientação das atuais e futuras decisões políticas, visando a correspondência entre as mesmas e as suas finalidades intrínsecas.