As últimas semanas têm sido marcadas por sucessivas más notícias no campo da saúde. Insalubridades. O tempo, as más políticas, as expectativas goradas, as promessas por cumprir, tudo isso vai erodindo o Governo cujas habilidades se vão esgotando.

Comecemos pela violência urbana. A violência é um enorme problema de saúde pública, não só pelos danos físicos e mentais que provoca. É um sintoma de patologia social. Tivemos notícias sobre violência doméstica, a mãe de todas as violências, umas com condenação e outras com falta de senso na escrita de um acórdão. Enfim, podemos dizer que houve um empate. E houve cenas, felizmente filmadas, de agressões à porta de estabelecimentos que deveriam ser só de diversão – embora alguma pouco saudável –, de maldade pura numa rua de Coimbra e de assalto a agentes da autoridade, da autoridade que é de todos nós, a que as polícias exercem em nosso nome. Não conhecemos as razões das altercações que terminaram das formas bárbaras a que podemos assistir.

No caso do Urban – nome muito apropriado para a violência de que vos escrevo – poderá ter havido uma intervenção despropositada e ilegal sobre eventuais meliantes. Não sabemos. Mas os supostos infratores, uma vez agredidos, tornaram-se vítimas e é só isso que agora são. A polícia deveria ter sido chamada pelos seguranças, se achavam que tinham razões para desconfiar daquelas pessoas, em vez de fazerem justiça pessoal, deslocada, gratuita e desproporcionada. Todavia, existe a ideia de que a polícia não chega, porque nem para ela a justiça serve.

Há polícias agressores? Claro que haverá. Mas o polícia foi agredido e o agressor que até já era conhecido, aparente reincidente, sai em liberdade. O incentivo é para que volte a fazer o mesmo. Pode-se bater na polícia. Não faz mal. Os agressores de Coimbra, logo identificados, são outros reincidentes e já anteriormente condenados sem nenhum tipo de eficácia preventiva, por aquilo que se viu, das penas aplicadas – alguém escreveu que teriam sido penas suspensas.

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O combate à violência faz-se em casa, no seio das famílias, nas escolas, nos núcleos de lazer, nos estádios desportivos, na moderação da linguagem dos políticos, na eliminação do insulto gratuito com que se mimam supostas figuras públicas, mas também se faz pela aplicação de penas consequentes e dissuasoras, em tempo útil. A nossa lentidão na aplicação da justiça e o regime de penas não ajudam à segurança, não primam pela defesa da saúde pública. Não seria melhor ter menos presos preventivos, às vezes encarcerados por anos sem sequer estarem acusados, e mais presos julgados?

É também por isso, por impunidade e não por falta de atuação da ASAE ou DGS, que cantinas escolares servem refeições com comida que não cumpre o exigido em termos de qualidade e higiene. Outro grave alarme para a saúde pública e uma chamada de atenção para a urgência de nos dotarmos de mais técnicos nessa área. Desinvestimento público, desleixo, falta de pagamento a fornecedores? Talvez? Mas a porcaria não pode ser justificada por falta de meios. Não podem fornecer? Não forneçam, mas não intoxiquem as pessoas.

E porque falamos em desinvestimento chegamos à Legionella. Portugal, não pelas melhores razões, entrou para a lista dos grandes especialistas em Legionella. Em 2014 tivemos, com números confirmados, o segundo maior surto industrial de que há conhecimento. Ganhámos experiência e não tenho dúvida de que as mesmas pessoas que lidaram com o problema de 2014, tragicamente sublinhado por 12 mortes, estão a saber tratar do surto atual. As condições são agora diferentes, embora pudessem ter sido ainda mais graves. O mais importante é identificar e neutralizar a fonte de emissão de Legionella para o ar. Isso foi feito, dizem-nos as autoridades de saúde.

Chegados aqui, tratadas as pessoas com infeção clínica e controlada a propagação, é o momento de apurar o que correu mal, identificar responsabilidades e implementar medidas preventivas. É o que tem sido feito. Mas há factos que merecem reparo.

O ministro da Saúde, certamente com a preocupação de assumir as responsabilidades políticas que lhe são próprias e indelegáveis, afirmou que já sabia que tinha havido uma falha técnica quando ainda ninguém conhecia as causas primeiras, as root causes, do que se tinha passado. Condicionou a opinião pública, a investigação e a administração do hospital que se apressou a vir dizer que tinha feito tudo bem. Falou de mais. Acontece aos governantes. Também me aconteceu.

Voltou a errar, no meu entender, quando envolveu o Ministério Público numa fase demasiado precoce do processo. É o que parece. O essencial da investigação tem de ser feita por organismos do Ministério da Saúde e do Ministério do Ambiente. Já existiriam indícios suficientes para chamar a polícia? Não sabemos. O que sabemos é que a possível chamada extemporânea do MP levou à trapalhada das autópsias.

Oh Silva, vá lá buscar uns corpos às capelas, parece que estão a ser velados, e leve uns sacos para não sair com as coisas debaixo do braço, à vista de todos. Dizem que é para levar à Medicina Legal. Fica no Campo Santana. Leve o Gomes consigo que ele ajuda. Sim chefe!

Portugal sem manual de instruções. Mas seria mesmo necessário realizar autópsias a cadáveres com causa de morte registada e bactéria isolada? Agora, não falta quem diga que sim, mas era mesmo? Até lá, as investigações, agora muito secretas, continuarão e, no fim, à falta de responsáveis, encontrarão um bode expiatório. Este Governo é exímio nisso.

Mais um conselho. Não estejam sempre a repetir que os mortos são velhos, doentes, diabéticos, hipertensos e insuficientes cardíacos. Todos sabemos que são estes os que mais morrem, de tudo. Percebo que queiram caracterizar os casos e “descansar” os mais novos. No entanto, não gerem a ideia de que morrerem velhos não faz mal, como se estes fossem descartáveis. Até foi o Ministro que disse estarmos num País de velhos e pobres.

Chegados aqui, o desinvestimento, a glória escondida do nosso Governo social-comunista, é o principal culpado do surto? Não sabemos. Talvez seja. Seguramente que não terá sido o único fator. Mas haja vergonha. Dizer que o surto acontece por causa de uma legislação do Governo PSD/CDS é ridículo e delirante. É patológico. É ignorante. O que está em causa, no contexto deste surto, não tem que ver com controlo da qualidade do ar, mas sim da água e esse controlo, diz o Hospital, foi feito. Parem com a demagogia, assumam as responsabilidades que competem a quem governa ou apoia um Governo.

Há desinvestimento na saúde? Há, é dramático e com uma dimensão nunca antes vista. O OE para 2018 é chocante. E está a provocar a lenta destruição do SNS que conhecemos. Não se trata de apenas julgar o surto da Legionella num hospital de Lisboa. É muito pior, é a perda de acesso a cuidados necessários e em tempo útil. É a dívida que cresce a um ritmo muito maior do que em anos de troika. Noutro texto voltarei ao OE, mas prefiro pronunciar-me depois de o ver aprovado.

E em termos de acidentes houve o fogo no Hospital de Santa Maria. Dói-me saber que a minha Aula Magna ardeu. Graças aos bombeiros não ardeu mais nada. Teria sido dramático. Há uns meses, a propósito de Pedrogão, lembrei o risco de incêndio em instituições de saúde. Não se esqueçam de treinar, rever procedimentos, estar alerta. Um fogo num hospital pode ser muito mais mortal do que um surto de Legionella.

Um episódio que bem retrata o fim anunciado do SNS que conhecemos – não, não estou a exagerar nas palavras – é o da manipulação das listas de espera que o Tribunal de contas detetou. Pode ter sido incúria, incompetência ou dolo. Má prática foi seguramente. E, mesmo com números expurgados, os tempos de espera continuam a aumentar, a procura de serviços de urgência não diminuiu. O Governo bem esconde, deixou de publicar relatórios regulares de Acesso e da gestão das listas de espera por cirurgia (SIGIC), mas a verdade está lá e os utentes sentem. Que dizer da espera média de 120 dias por um TAC? Bem podem publicar despachos a exigir 90 dias de tempo máximo de espera. A soluções são outras. A elas voltarei noutro dia.

E os 5 milhões que são do IPO, entregues pelo anterior Governo para obras no Bloco Operatório, e que os Ministros, o da Saúde e das Finanças, não deixam agora usar? Que dizer aos doentes que poderiam ter sido operados se as condições já fossem outras?

Com tudo isto há descontentamento. As greves também espelham isso. Não estou nada convicto de que os meus Colegas, médicos, tenham toda a razão do seu lado. Já o disse, preferiria ver reivindicações por uma grelha salarial e um método de retribuição melhor, mais justo e mais consentâneo com a responsabilidade profissional. Não me parece que se possa pedir melhoria salarial quando se pede redução de utentes a cargo, nem que se possa criticar o excesso de horas de urgência e, ao mesmo tempo, gritar contra a excessiva e ineficiente contratação de tarefeiros. Há contradições que têm de ser explicadas e assuntos muito mais graves para resolver, no que aos profissionais de saúde e ao seu Ministério diz respeito.

O Governo colocou-se dentro dos braços de uma tenaz. Criou custos de trabalho que não consegue pagar, de que a devolução das 35 horas é o exemplo mais gritante, promete ainda mais aumentos, seguramente merecidos, com a progressão nas carreiras e, simultaneamente, precisa de contratar mais pessoas, renovar equipamentos, construir novas estruturas e comprar medicamentos. Entretanto, empurra com a barriga já que há ministros com ela bem grande.

E, para terminar com médicos, há que escrever sobre a recente polémica que envolve o presidente do Conselho Nacional de Saúde e o meu Bastonário. Acho que o ministro tem razão. Conversem. O Prof. Jorge Simões poderá ter sido infeliz na forma como o disse, mas é evidente que o SNS, todo o sistema de saúde, precisa de mais profissionais e não só de médicos. Tal como é evidente que há tarefas que os médicos deveriam delegar noutros profissionais, como já fazem, sem que isso implique o desaparecimento da essencialidade da Medicina. Há lugar à deslocação de tarefas – task shifting – como já acontece há dezenas de anos em todo o mundo. As profissões de saúde não são antagónicas ou concorrentes. Não podem ser estanques. São complementares e os doentes precisam de todos eles.

Com tanta insalubridade, esta discussão não é útil nos termos em que a querem colocar. O Prof. Miguel Guimarães é um médico experiente e reconhecidamente competente. Sabe tudo isto e conhece bem os limites em que a repartição de tarefas e responsabilidades pode e deve ser feita. E também sabe que pedir a demissão do Presidente não leva a lado nenhum, tal como abandonar o Conselho seria prejudicial para os médicos. Precisamos de todos os fóruns onde possamos ser ouvidos e com credibilidade acrescida. Foi bom ter ouvido o Bastonário dos Médicos reconhecer que somos poucos e mais velhos, incluindo-me eu neste último grupo. Com esta constatação está eliminada a contradição de pedir menos alunos nas Faculdades de Medicina em Portugal.

Médico, ex-ministro da Saúde