Durante anos, atribuí aos escritor norte-americano William Saroyan uma expressão que utilizei muitas vezes: ”festivo-fascismo”. Lembrava-me que ele a utilizava num sentido particular, não coincidente com aquele em que eu a usava, mas não reli a passagem de Saroyan em questão durante décadas. No outro dia, deu-me a curiosidade de a reler e fui procurar nos livros o volume de contos The Daring Young Man on the Flying Trapeze (entre nós, creio, O rapaz do trapézio voador) e tive a desagradável surpresa de constatar que não apenas ela possui em Saroyan um significado distinto da ideia que dela construí (isso eu já sabia, como disse) como também que sem sequer é tal e qual assim: Saroyan refere-se a um seu método de composição literária que apelida: “the Festival or Fascist method of composition”. Esta coisa das traições da memória é sempre desgradável e deixou-me, por defeito, responsável não só pelo sentido como igualmente pela própria forma. Vou ter de viver com isso.

De qualquer maneira, a expressão continua útil. Serve para designar a atitude daqueles que, com pretensões intelectuais, têm a tendência a manifestarem-se em matérias políticas com um misto de indignação e notório contentamento de si, e um contentamento de si que se manifesta através do sentimento de pertença a um grupo caracterizado por uma superioridade moral indisputável e dotado da ilusão de ter graça.

Não se contam as vezes que o festivo-fascismo se dá a ver, normalmente de maneira gritante, e sempre reivindicando uma justeza e uma pureza de sentimentos muito acima da média do comum dos mortais, que imaginam representar superiormente. Aquelas deputadas portuguesas que se fizeram fotografar com uns cartazesinhos onde se lia “#Ele não” em protesto contra Jair Bolsonaro são um exemplo tão bom como outro qualquer da atitude festivo-fascista. Mas são apenas um exemplo entre mil. O festivo-fascismo multiplica-se nos nossos dias a olhos vistos. Nada nele indica a adopção de posições políticas reprováveis. Muitas vezes é exactamente o contrário que se passa. É puramente uma questão de estilo, um estilo que acaba por colorir a mensagem com certas características psicológicas particulares, algumas das quais  conduzindo a efeitos políticos nocivos, partindo do princípio que a patetice pode ser politicamente nociva. O “Je suis Charlie” de há uns anos atrás é também ele, de um modo aparentemente paradoxal, uma manifestação de festivo-fascismo.

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