Há efectivamente inúmeras razões da parte de muitos europeus para desejarem que a Inglaterra saia de vez de uma «união» onde nunca quis entrar e da qual só nominalmente aceitou fazer parte a fim de promover os seus interesses económicos e, sobretudo, os da maior bolsa financeira do mundo, que continua a ser a «City of London». Razão tinha o general De Gaulle que nunca a deixou entrar na «Europa», à qual, de resto, a Inglaterra só pertence quando lhe convém. Repare-se aliás que não usei a expressão Reino Unido.

Com efeito, a Escócia não quer sair da UE, antes pelo contrário, como sucede também com o País de Gales; entretanto, a Irlanda do Norte é uma espécie de derradeira colónia da Inglaterra… juntamente com Gibraltar e as Ilhas Maldivas. A Inglaterra, sim, essa sempre foi contra qualquer união com excepção da «relação especial» que desenvolveu com os Estados Unidos quando o império começou a ruir. A perda do império é, aliás, a causa remota da disposição mental soberanista dos ingleses das gerações mais antigas perante o continente europeu.

Dividir e reinar foi sempre a sua divisa, desde a Índia ao resto do mundo, e Portugal foi um dos primeiros piões do seu xadrez internacional. Na actual UE, a Inglaterra só é a favor daquilo que persiste em designar por «mercado comum», do mesmo modo que sempre foi a favor da expansão dos mercados, como uma ilha que é. Uma vez dentro do «mercado comum», a Inglaterra opôs-se sistematicamente a todas as medidas de integração europeia, muito em particular à moeda única, a qual vinha fazer concorrência directa à libra esterlina assim como ao dólar, o que reforçou a «relação especial» com os EUA.

Em suma, a Inglaterra ficou fora de todos os dispositivos europeus integrativos – mais ou menos federalizantes – a começar pelo «espaço Schengen», mantendo as suas fronteiras fechadas sempre que isso lhe conveio: Ao mesmo tempo, cobria-se com a sua espessa pele de soberano que já não era mas não deixa de fazer inveja a muita gente, inclusivamente por cá. Se os ruídos contra a burocracia europeia não passam disso: ruídos, bastando ver como os representantes ingleses a manipulam, a começar pelo idioma, o mesmo sucede com o chavão dos dirigentes europeus não-eleitos, como se directores gerais e chefes de repartição não fossem nomeados pelos eleitos de cada país. Idem com a lenga-lenga das transferências financeiras de que se queixa a Inglaterra, mas que as regiões subalternas do Reino Unido recuperam em boa medida…

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Dito isso, não deixa de ser verdade que o défice democrático inerente ao federalismo frustrado da UE é bem real (ver o meu capítulo no livro Em Nome da Europa), mas também é certo que, com a globalização, mesmo as maiores potências perderam poder relativo. Nenhum país contribuiu mais para isso, aliás, do que a Inglaterra, em parceria com os EUA e a NATO, quando promoveram a desarticulação da UE fazendo entrar nela, um após outro todos, os antigos satélites do império soviético, por definição reaccionários e adoradores do mercado.

Era evidente que este «alargamento» colidiria inevitavelmente, ao contrário das falsas promessas atlantistas, com o «aprofundamento» do legado comunitário. Não era outro o objectivo da Inglaterra, que assim contribuiu para manter seis países de Leste fora do «euro», juntamente com os dois escandinavos da sua área de influência económica histórica, conjunto este que poderia vir a ser o dos próximos países a sair da UE – nove contra os dezanove do euro – se o Brexit ganhasse, como ainda há dias parecia…

Os dados, porém, estão longe de ter rolado. São o Financial Times e o Wall Street Journal – órgãos oficiosos das respectivas bolsas – que se prazem em anunciar a provável viragem de um eleitorado mais dividido pela idade e a região, assim como pelos fantasmas imperialistas, do que pelos partidos políticos. Afinal, esta reles disputa intra-partidária provocada por Cameron não passa de uma contenda entre conservadores cegos ao mundo e conservadores algo menos obtusos. Os EUA e a Reserva Federal querem que a Inglaterra fique na EU. Por alguma razão há-de ser. A ideia dos adeptos do Brexit de conciliar o proteccionismo económico, incluindo a entrada de imigrantes, com a globalização é completamente vã!

Neste momento, os campos do referendo estão empatados e é de esperar que os indecisos votem contra o risco maior; são mais prudentes e não sabem o que os espera se saíssem da UE. Ficando, nada têm a perder e tudo a ganhar. Têm o melhor da UE e continuarão a não se comprometer com o seu «défice democrático» nem com o resto do mundo. Este continua a bater à porta da União, a qual tem sem dúvida custos altos, como qualquer «clube de luxo», mas que nos protege melhor do que qualquer outra fronteira.

A arrogância proclamada por muitos ingleses antes do Brexit só é compensada pelo risco que os fará pensar duas vezes antes de entaiparem o túnel da Mancha… Como numa corrida de cavalos, eu aposto que o túnel continuará aberto. E se assim não suceder, uma coisa é certa: quem mais ganharia com isso seriam os soberanistas do extremo oposto, esses pretensos «esquerdistas» que só sonham com «jangadas de pedra»!

(Declaração de interesses: vivi vários anos em Inglaterra em diferentes épocas e situações, antes e depois do 25 de Abril.)