Bastam cinco minutos à porta de uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) dedicada à infância para se perceber a “azáfama” no horário de entrada e de saída das atividades diárias. Pais, crianças, mochilas, lancheiras, risos, algumas birras, mas sobretudo muita alegria por um dia que começa ou termina.

Não são raras as vezes em que um pai ou mãe é acompanhado por mais do que um filho a frequentar a mesma instituição, ou até mesmo a levar filhos, sobrinhos, filhos de amigos, vizinhos, numa tentativa de poupar recursos e aproveitar o tempo “em família” que tanto escasseia.

As IPSS têm como fim, primeiro e último, servir as famílias das suas comunidades. Estas entidades permitem não só fortificar laços de sangue, como estendê-los a toda a população, tendo um papel social insubstituível. Estes locais de ensino permitiam, até agora, não só colmatar respostas inexistentes do ensino público, como também permitiam uma conjugação de pessoas de várias origens e estratos sociais. Todos contribuíam de acordo com os seus rendimentos, num verdadeiro espírito corporativo.

Mas tudo mudou a partir de setembro de 2022, pela entrada em vigor da Portaria nº198/2022 (27 de julho), que veio tornar obrigatória a gratuitidade das creches integradas no sistema de cooperação para todas as crianças nascidas a partir de 1 de setembro de 2021.

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De acordo com esta Portaria, todas creches pertencentes a IPSS (estamos a falar de algo com impacto nacional) passam a ser pagas na totalidade pelo Estado, que ficou a gerir a totalidade das vagas das instituições.

Devido ao facto de a “procura ser superior à oferta”, foram definidos critérios de priorização (artigo 9º e respetivo anexo da Portaria nº1989/2022), que se sobrepõem aos Regulamentos Internos das IPSS. A ausência de uma reflexão séria sobre estes critérios é gritante, levando mesmo a crer que os autores do preâmbulo da Portaria (numa exortação extensa aos valores da natalidade e de conciliação de vida profissional e pessoal) não são os mesmos que estabeleceram os critérios, e que estes nunca se encontraram para discutir o diploma e avaliar a sua coerência.

Atendamos ao 4º critério de priorização – “Crianças com irmãos que comprovadamente pertençam ao mesmo agregado familiar e que frequentam a resposta social“. Ora o problema está na expressão “resposta social”. No vocabulário e entendimento da Segurança Social e até no léxico utilizado na Portaria, “creche” é uma resposta social, “pré-escolar” é outra resposta social distinta, ou seja, “resposta social” não tem o mesmo significado de “instituição social”.

A título de exemplo, uma família que tenha um filho no pré-escolar de uma IPPS, se pretender que o seu outro filho ingresse na Creche da mesma IPSS – onde já tem estabelecida uma relação de confiança e de integração, como os outros irmãos – não se encontram ambos na mesma resposta social “Creche”. Assim, esta criança mais nova não é considerada como prioritária nessa admissão.

Paralelamente, nem uma linha é escrita sobre prioridade a filhos de trabalhadores de IPSS, maioritariamente do sexo feminino, que outrora viam, e bem, facilitados horários de amamentação, sem comprometimento da sua vida laboral e pessoal.

Ao aperceberem-se destas limitações, um grupo de pais de uma IPSS de Caldas da Rainha escreveu uma Carta aberta/Abaixo-assinado à Sra. Ministra Dra. Ana Mendes Godinho a solicitar, em concreto:

– Que o 4º critério não se cinja a irmãos a frequentarem a mesma “resposta social”, mas sim abranger outras respostas sociais dentro da mesma instituição;

– A ponderação da priorização de filhos de colaboradores da Instituição na admissão à creche.

A obtenção de uma resposta do Ministério puramente “administrativa” e sem qualquer espírito refletivo levou-os a fazer uma petição online nacional (Creche Feliz – Irmãos juntos na mesma IPSS) que, a par de outras petições sobre este tema, conta com mais de 1400 assinaturas.

A razoabilidade dos argumentos foi unânime para os deputados de todos os Partidos, incluindo o Partido Socialista, presentes na audição parlamentar realizada a 14 de fevereiro de 2023, e da qual resultou uma recomendação de clarificação dos critérios, que aguarda votação em plenário. Mas sem vontade ministerial, esta será só mais uma boa recomendação que não sairá do papel.

Nós, pais, não contestamos a boa intencionalidade da gratuitidade, mas sim a forma como as crianças serão alocadas nas IPSS e Creches do Sector lucrativo aderentes a este programa social. A atribuição de vagas em creche não pode, e não deve, ser feita da mesma forma que se escolhe o local de internamento de um doente, e até aí há fatores como a proximidade à família têm um maior peso (por períodos mais conturbados que o SNS atravesse). Em última instância, uma família cujo 1º filho frequenta um colégio privado poderá mais facilmente ver os seus outros filhos com vagas gratuitas atribuídas na mesma instituição, do que outra que optou pela educação numa IPSS, invertendo, por completo, o cariz beneficente desta medida governamental.

Se tudo permanecer como está, o próximo ano letivo vai arrancar com muitos irmãos à porta de creches de IPSS que outrora eram “creches felizes”. E as famílias? Deixadas de “ser tidas ou achadas” na escolha da instituição escolar para os seus filhos, sob pena de lhes ser negada a gratuitidade que o Estado legislou ser para todos.

Creches felizes e gratuitas, se calhar só para alguns…infelizmente poucos!