“Meus senhores e minhas ricas senhoras, como sabem, já cá canta o dinheirinho. É com legítimo alvoroço e a maior vocação universalista, que me apresso a confirmar tão importante nova, e bem me apetecia ser um cronista vivaço, sinuoso e espadachim, para lhe puxar com subtileza pelas implicações íntimas. De qualquer maneira, parece que temos certo o prolongamento da presente estação democrática, pluralista e ocasionalmente socializante, por um mínimo de dezoito apetitosos meses. Os altos responsáveis da governação só não cabriolam aí de puro optimismo porque nada na história ou natureza das sociedades humanas pode exceder o optimismo com que esperaram pelo dito dinheirinho ou excederá o optimismo com que o vão gastar. Isto em política o que é preciso é fé.”

O parágrafo que acabaram de ler é da autoria de Vasco Pulido Valente na sua coluna de opinião do Diário de Notícias de 1 de Julho de 1977, e depois republicada no volume O País das Maravilhas, de 1979 (um livro que nunca foi reeditado, o que é lamentável, já que nos dá, pela pena de um espírito privilegiado, a mais viva das imagens do Portugal da segunda metade dos anos setenta). Eu sei que tenho citado muito Vasco Pulido Valente por estes dias, mas a culpa não é minha: é dele. Ninguém como ele nos deu a ver a constância da nossa história recente e a permanente repetição das crises e do tipo de reacções dos nossos governos às crises. O  que ele escrevia em 1977 aplica-se tal e qual aos dias de hoje, resumidos nas já célebres palavras, naquele inglês que é uma espécie de baixo-latim dos tempos presentes, endereçadas por António Costa – o “pedinte pândego”, como lhe chamou aqui Helena Matos – a Ursula von der Leyen, quando esta lhe entregou o documento com a aprovação do “Plano de Recuperação e Resiliência” português, cujo dinheiro deve começar a chegar em Julho: Now I can go to the bank?

Terão notado a data do artigo de Pulido Valente: 1 de Julho de 1977. O dinheirinho que “já cá canta” é aquele que nos chegou do FMI, aquando da sua primeira intervenção em Portugal, a pedido do I Governo Constitucional de Portugal, chefiado por Mário Soares. Foi, como se sabe, a primeira das três vezes em que tivemos de recorrer ao FMI. A segunda foi poucos anos depois, em 1983, no IX Governo Constitucional (o do “Bloco Central”), também presidido por Mário Soares. E a terceira, como toda a gente se lembra, foi em 2011, no segundo governo de José Sócrates (o XVIII Governo Constitucional). Desta vez não veio o FMI, veio aquilo que António Costa chama a “bazuca”, que também chega acompanhada de um caderno de encargos, coisa que Ursula von der Leyen, de resto, fez questão de notar a um Costa que pensava já noutra coisa: “Agora tem muito trabalho pela frente”.

Não confundo, é claro, as ocasiões da chegada do dinheirinho nem as situações que motivaram a sua urgência. E menos ainda as personalidades dos primeiros-ministros associados à sua vinda. Sobretudo, não confundo Mário Soares com os dois outros. Soares, com todos os seus defeitos, não era louco, como Sócrates, nem cínico, como Costa. Mas, deixando de lado a questão desta curiosa evolução da loucura para o cinismo, traços de personalidade com os quais a população aparenta em geral dar-se bem, convém lembrar que, para pensar o que quer que seja, não basta estar atento às diferenças: é preciso também detectar as semelhanças.

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E a principal semelhança entre estas quatro situações é a maneira como tradicionalmente nos inocentamos de qualquer culpa, como se as desgraças surgissem do nada e nos caíssem em cima por diabólica magia. Respondendo à comissária europeia (e socialista) Elisa Ferreira, que afirmou que “é penoso ver que Portugal, com estes anos todos de apoio [cerca de 150 mil milhões de euros em fundos de coesão nos últimos 35 anos, como lembrou no Público João Miguel Tavares], ainda está entre os países atrasados”, António Costa declarou taxativamente: “Temos um historial de que nos devemos orgulhar e não ser motivo de flagelação relativamente à utilização dos fundos”. Ora aí está um cavalheiro que sabe exprimir bem o sentimento nacional! Somos óptimos, excelentíssimos, mas os azares são os azares… De facto, António Costa é a última pessoa do mundo que eu imaginaria a autoflagelar-se e a pôr sequer em questão as imensas virtudes do seu pessoal “historial”. Para que não sobrassem dúvidas, pelo sim, pelo não, acrescentou depois que, com este Plano de Recuperação e Resiliência, é a altura de parar de “chover no molhado” e seguir em frente à velocidade máxima. “Isto em política o que é preciso é fé”, como ironizava Vasco Pulido Valente. Esperou-se com optimismo pelo dinheirinho, e com optimismo ele será gasto, em larga medida pelo Estado e em benefício, directo ou indirecto, do poder.

Com uma pessoa assim, dotada de tamanho espírito crítico e que tão bem aprende com os erros passados, um ser humano normal pergunta-se se o PRR não será, ao fim e ao cabo, um PFF: Plano de Fraqueza e Fragilidade… Há mesmo vários sinais que apontam nesse sentido e muita gente teme o pior no que respeita à maneira como a tal “bazuca” será utilizada. Os exemplos passados não aconselham, em geral, grande confiança e o que se prepara por aí corre o risco de obedecer a um padrão de preferências e de negociatas que conhecemos bem demais.

Se assim for, como é provável que seja, será difícil olhar à nossa volta. Já o é, de resto. A mediocridade do regime inclina mesmo agora uma boa parte da população a olhar para o lado, quanto mais não seja abstendo-se de ir votar. Com mais um fracasso em cima, será ainda pior. A única coisa ao nosso alcance é continuar a fazer o nosso trabalho o melhor que sabemos e podemos, procurando não nos deixar distrair (e deprimir) pelo ruído ambiente e pelo optimismo de fancaria que o cinismo reinante inventa dia após dia. Não é fácil. Falo do que sei.