Quando, daqui a uns anos, analisarmos o governo das esquerdas unidas, chegaremos à conclusão de que a política de saúde poderá ser descrita como inconsequente, na maioria das matérias, e destrutiva, naquilo que se prende com acesso e qualidade. Considerado o legado recebido pelo atual ministro, nada o faria antever. Nem nos piores e mais duros anos da troika houve tanto descontentamento, tanta greve e tanta falta de apoio político ao gabinete da João Crisóstomo. O Professor Adalberto Campos Fernandes, vítima de si próprio e das circunstâncias em que o primeiro-ministro e o ministro das Finanças o colocaram, está cercado por todos os partidos e é cada vez mais evidente que já nem o PS o quer aturar. Vida difícil, a dos que tudo prometem e quase nada cumprem.

É justo admitir que o discurso de hoje já não é só, finalmente, assacar culpas ao resgate que, convirá nunca esquecer, resultou apenas da irresponsabilidade dos últimos anos da governação do Engº José Sócrates e dos apaniguados que continuam a ser a alma mater do PS. O Dr. António Costa já compara, de modo infeliz, os custos de oportunidade de fazer uma auto-estrada com a progressão salarial dos professores do ensino público e admite que “não há dinheiro”. Na senda do chefe, o nosso ministro da Saúde já fala em desinvestimento nos últimos 10 anos, alargando o intervalo da análise, e ainda nos há-de falar nos estádios que se construíram em vez de hospitais. Os do Euro, o que nem sequer vencemos, lembram-se? Enfim, o tempo lá vai erodindo a falácia de recuperação de rendimentos e de benefícios sociais com que as esquerdas unidas quiseram enganar os portugueses.

É certo que há mais funcionários no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e também é correto admitir que tem havido um esforço para mitigar carências em áreas, geográficas e de especialidades, com maiores dificuldades. O esforço não tem dado frutos e as razões são múltiplas: incentivos ainda não atrativos, condições de trabalho desmotivantes, progressão na carreira que é pouco compensatória, isolamento profissional e científico, etc. Continuo a acreditar que se tem tentado contratar os médicos especialistas disponíveis e que, se houvesse mais dinheiro, se contratariam mais enfermeiros e técnicos superiores, bem como pessoal administrativo. Mas não há mais dinheiro. Era evidente que não haveria e isso deveria ter sido dito no início da governação. Criaram expetativas que não poderiam cumprir. Se já sabiam, e desconfio que sim, mentiram. Se não sabiam, mas deveriam suspeitar, foram inconscientes.

Teria sido mais inteligente, antes da decisão, demagógica e impulsionada por greves, de passar os funcionários públicos contratados por CIT para 35h – o que foi um enorme disparate –, tentar perceber quantos profissionais seriam necessários e ter programado as contratações em função das especificações dos recursos humanos em causa e dos horários a cobrir, em vez de mandar fazer o levantamento das necessidades só depois da decisão já ter sido tomada. Sobre o momento da redução de horário, coincidente com as férias de verão, a tolice fala por si. Volto a insistir que, no meu entender, teria sido preferível manter os horários de 40 horas semanais e negociar a compensação salarial, a introduzir faseada e progressivamente, para quem auferia de salário baseado em 35 horas de trabalho. No fim, sendo certo que o SNS se defrontava já com falta de recursos humanos, vão continuar a faltar médicos de especialidades habitualmente não consideradas, como os de saúde pública, ou enfermeiros e estatistas dedicados à investigação clínica. Depois, não se venham queixar de que não há ensaios clínicos ou estudos epidemiológicos suficientes em Portugal. E para os serviços de nutrição que vão ser criados, uma medida que é digna de louvor, há profissionais suficientes?

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Convirá ser claro na refutação de dois argumentos que se ouvem repetidamente. “O dinheiro nunca chegará” e “nunca haverá gente suficiente”. Duas falsidades clamorosas. Em ambos os casos é somente preciso avaliar o que há, o que se pode e está disposto a gastar, determinar necessidades, elencar prioridades, antecipar evoluções da procura, desenhar um calendário e estruturar uma resposta política acordada com os parceiros sociais e políticos. Em suma, governar, exatamente o que tem faltado. Ainda não sabemos quanto vai custar a generalização do trabalho a 35h por semana no SNS. Uma coisa é certa. O que for gasto a pagar mais 5 horas em cada semana, seja por contratação de mais pessoal ou com horas extraordinárias, vai faltar para pagar medicamentos, cirurgias do programa de combate às listas de espera e TACs que teriam de ser realizadas fora dos serviços públicos, onde a capacidade de resposta radiológica é muito insuficiente. A isto chama-se “opções políticas”. São as escolhas que terão de ser julgadas nas eleições. Para isso, para que se tenha vontade de votar, precisamos de alternativas credíveis e não de meros panfletos.

Vejamos mais alguns exemplos, evidentes, de falhas na governação. Os dois primeiros não nasceram agora, mas espelham a incapacidade de resolver, exemplificam a inépcia na tal vontade de “devolver o SNS aos cidadãos” com que o governo nos enganou.

A acumulação de dívida em medicamentos de uso hospitalar, em especial dos oncológicos, resulta da não antecipação da procura e de uma incapacidade central de determinar o que se pretende comprar. É moroso e complexo determinar os resultados desejáveis e exigíveis para cada medicamento que se quer avaliar, onde, por quem e em que doentes deve ser usado, que estratégias de custos partilhados com a indústria se pretendem seguir e quais os preços justos que podemos e queremos pagar por esses medicamentos, seguramente inferiores aos que pagamos com os usos decorrentes das autorizações especiais. No entanto, ao mesmo tempo que se vai gastando em pessoal, os orçamentos das unidades de saúde não contemplam as subidas a dois dígitos da despesa com medicamentos usados no tratamento do cancro. Neste caso, não se trata de pessoal vs tecnologia, mas sim de contemplar as duas necessidades.

A expansão inexorável da epidemia de bactérias resistentes a antibióticos nos hospitais, em especial das Klebsiella resistentes a carbapenemos (KPC), já quase ubíquas, que são um tipo particularmente perigoso de microorganismos patogénicos, é fruto de políticas no uso de antibióticos que ainda são inadequadas e, acima de tudo, de práticas de internamento hospitalar forçado e prolongado por circunstâncias nem sempre clinicas, quando o investimento deveria ser em tratamentos domiciliários, a que devemos juntar a péssima estrutura interna dos hospitais, antigos ou velhos conventos, que nunca foram alterados, destruídos e reconstruídos, como se tem feito no mundo dito civilizado. Simplesmente, basta observar que a estrondosa maioria dos hospitais portugueses ainda tem enfermarias de muitas camas, em vez de quartos para uso singular ou duplo como se deveria exigir. Entretanto, fizeram-se estádios e rotundas, emprestou-se dinheiro a colecionadores de arte, colocaram-se amigos nas administrações de bancos e…veio a Tróika.

Os dois exemplos seguintes, de falta de capacidade para governar, já são só desta trupe que tomou o governo em novembro de 2015.

Não se suporta a demagogia como a que se tem usado com a Pediatria do Hospital de S. João. O problema, mesmo que nunca se tenha explicado bem a sua génese, dimensão e soluções possíveis, era para ser resolvido “para a semana”. Agora parece que vai ser tratado no “fim da legislatura”, o limbo para onde estão a ir todas as promessas que foram feitas no início desta mesma legislatura.

E o INFARMED está a seguir o mesmo caminho. Para tentar remediar um tremendo erro político que se pintou de “comunicação” mal feita, inventou-se uma comissão que validaria ex post a decisão ex ante. Dizem que já há relatório. E, contudo, a asneirada persiste. O texto, sabe-se lá por via de quem, é noticiado num jornal do Porto e deu azo a declarações do Presidente da Câmara do Porto que não se absteve de vir criar factos e condicionar a decisão que, bem vistas as coisas, nunca será entendida racionalmente, seja qual for. O ministro, ao falar demais, encarregou-se de matar uma solução, baseada em evidência, que pudesse ser aceite por todos os interessados. Entretanto, deram-lhe uma parlamentar oportunidade e sua excelência, sempre prolixo, fez-se de ofendido, com registo em livro de atas e tudo o mais a que tivesse direito. “Por qué no te callas”?

Vejamos um tema que merece uma abordagem séria para lá da troca de mimos verbais que definem os trabalhos parlamentares. O sistema de saúde português, não apenas o SNS, está a ser submerso por um “tsunami de procura” de cuidados. Existem razões prováveis para este fenómeno que merecem ser mais estudadas. Não estou certo que seja só o envelhecimento populacional, o preço do sucesso no aumento da longevidade, o que gera mais procura na dimensão em que ela agora sucede. Nem será apenas a enorme carga de doença e a falta de anos de vida saudável depois dos 65 anos. Há uma crescente medicalização da sociedade e das soluções dos problemas de saúde, com excesso de diagnósticos (overdiagnosis) e sobre-tratamento (overtreatment). Há que encarar esta questão e tentar abordá-la de forma positiva. Existe um novo consumismo que o próprio sistema gera e que exige ser avaliado quando se discutem incentivos à produção e pagamentos “à peça”. O problema não é só português e já mereceu reflexão na WONCA, a organização internacional de médicos de cuidados primários. Diagnósticos abusivos, exames inúteis e tratamentos desnecessários são uma dimensão de desperdício cuja grandeza carece de ser revista em Portugal. As falhas de acesso não podem ser só medidas pela imparidade entre procura e oferta. É urgente perceber, para todo o tipo de cuidados e não apenas para as urgências, que tipo de procura existe e que respostas são oferecidas. Todos pagamos essas “ofertas”, mesmo quando são “gratuitas”. Quem sabe, com tantos grupos de trabalho e comissões que o nosso ministro vai inventando, ele possa pegar nesta ideia? O problema de fundo é que não é com grupos, grupelhos ou comités que se ganha credibilidade. Uma vez perdida, é o diabo voltar a ganhá-la.

Médico, ex-ministro da Saúde

PS. Um aplauso, de pé, à campanha televisiva sobre o recurso à Linha Saúde 24. Não sei quanto custou, nem que sucesso terá. Ver-se-á daqui a uns meses. Mas é um exemplo muito positivo de como as televisões podem, em horário nobre, pugnar pela saúde das pessoas. Parabéns a quem a pensou, desenhou e implementou. Um bom exemplo de como lutar contra o “tsunami de procura” através de educação para a saúde. Se funcionar, façam-se mais. Não faltam temas.