Comecemos por agradecer às divindades terem bafejado o nosso retângulo com tanta perspicácia. Nos últimos dias fizeram-nos obséquio de noticiarem que os homens heterossexuais desejam mulheres, perdão, que houve transferências, dentro do sistema bancário e com todos os registos, entre Portugal e offshores durante o governo PSD-CDS. (A propósito: se tiverem um assomo de rebeldia, sintam-se à vontade para noticiar o montante das transferências semelhantes ocorridas já no tempo novo da geringonça.)
A notícia de que a melhor lição sobre assobios veio de Lauren Bacall, desculpem, de que há transferências para paraísos fiscais, e a maioria dos comentários sobre esta magna questão, vieram em tom apropriado. Foi dito e escrito que milhões, ‘escaparam ao fisco’, que ‘fugiram’ para offshores. Fugiram, tal qual os meliantes que há dias fugiram da prisão de Caxias pela janela. Marotos dos milhões, que saíram à socapa (os registos todos não interessam) do sítio onde tinham a obrigação ética e legal de se manterem sossegados. Pior: estas transferências não foram tratadas pela AT, apesar de terem sido ‘denunciadas’ (juro que li num jornal) pelos bancos. Denunciadas – assim como se denuncia um vizinho que bate na mulher.
Políticos de esquerda não quiseram que uns poucos jornalistas fizessem más figuras sem companhia, e comentaram o dinheiro que saiu como se, em vez de dinheiro de privados, fosse dinheiro tirado às contas do Estado. (E ainda dizemos que Trump é que é viciado em mentiras.) O sempre infeliz (e desleixado com a verdade) Costa também falou em milhões que ‘fugiram’. É que nem é necessário, para estes lunáticos, verificar se as transações são legais. É dar ideia de que é mesmo dinheiro tirado aos serviços à população carenciada, para engrossar contas anafadas de corruptos de direita. Vergonha na cara e medo do ridículo, RIP.
Bom, digam lá: não tinham saudades, já há uns tempos, de incentivos deste calibre à inveja, à ignorância e ao ressentimento social?
Regressemos dos meandros de, no mínimo, açúcar em excesso onde estas conspirações fervilham. Até agora, e certamente não foi por falta de investigação jornalística (ou será que depois de feito o alarido perderam o interesse?), as transações para offshores não indiciam fuga aos impostos (escrevo antes das audições aos SEF). (Quem fugiria aos impostos através de transferências bancárias claras, cujo registo fica lavrado no sistema e são declaradas aos serviços fiscais?)
Pelo que, segundo o que até agora se viu, tratam-se de transferências legítimas de pessoas e empresas que movem o seu dinheiro licitamente ganho de um lado para outro, e de empresas que pagam a fornecedores com contas bancárias em offshores. É, para mim, intolerável que movimentações destas, aparentemente legítimas, sejam apresentadas como crimes de lesa-pátria só porque sim, porque somos um país pequeno e mesquinho que odeia pessoas ricas e torce o nariz socialista ao capitalismo. ‘Denunciar’, para repúdio generalizado da populaça, estes ‘milhões que fugiram’ é um perigo público vindo de quem pretende restringir a liberdade de cada um dispor do seu dinheiro como lhe convém. É defesa de uma ideologia proto comunista onde o dinheiro pertence ao coletivo, ao Estado, em vez de ao proprietário, pelo que não pode ser transferido para fora do país. Só se pedirmos encarecidamente e nos derem, com ar reprovador, autorização.
O que interessa investigar, nos responsáveis políticos como nos burocratas, é o apagão da AT com estas transações, tendo em conta que importuna os contribuintes (sobretudo quem não tem dinheiro para pagar a advogados e ripostar) por tostões. Ou por que razão o governo Sócrates tornou supostamente obrigatórias estas estatísticas, se afinal não eram obrigatórias mas sim dependentes de validação política? O gosto nacional por quinze patamares de vistos burocráticos não espicaça a denúncia? Nem os abusos das autoridades fiscais e dos políticos da tutela? Legislar de forma confusa para permitir todo o tipo de interpretações também é pacífico?
Já as transferências para as offshores, em si mesmas, parecem tão inquietantes como um comprimido de valeriana. E a não publicação das estatísticas sobre elas foi tão rotundamente grave que ninguém reparou que não apareceram.
Claro que este não-assunto offshores é muito mais escandaloso (desmaios, se faz favor) que a recusa de se dar informações dos devedores em incumprimento à CGD (i.e., aos contribuintes), apoiada em peso pela esquerda. Se os jornalistas das offshores quiserem, eu dou explicações sobre isto. A esquerda que aprovou (com Sócrates) a publicação das listas de devedores ao fisco e à Segurança Social, recusa agora informar quem deve aos contribuintes, via CGD, pela razão óbvia: quem deve à AT e à SS são contribuintes da ralé e PME indiferenciadas; já quem deve à CGD são os empresários amigos dos governos PS, incluindo aqueles que votaram na administração do BCP engendrada por Sócrates depois da CGD lhes ter financiado compras de ações várias. Se os devedores fossem revelados, ainda ficávamos a saber para que serve um banco público.
Termino com sugestão de notícias para os jornalistas, tão intrigantes como transferências de dinheiro registadas. A propensão das senhoras para usarem estampados florais na primavera. Quantas calorias tem uma pizza. Se ousarem um registo mais sério, podem noticiar que temos eleições legislativas de quatro em quatro anos. Ou, dado que, perante este cenário, qualquer pessoa com neurónios funcionais coloca o seu dinheiro longe – e proteger de abusos socializantes poupanças e capital é, para mim, um direito inalienável – noticiem o surpreendente: distraídos que ainda conservam o seu dinheiro no país, ao alcance de socialistas radicais de espécies sortidas.