Nem tudo o que se pode fazer deve ser feito. Nem tudo o que é legal, é bom. Não basta estar na lei, para estar certo. Muito menos, para ser ético. Toda a lei deve ser calibrada, tendo em conta o timing e o contexto, sobretudo quando existem circunstâncias excecionais, como as atuais.

O Congresso do PCP pode realizar-se? Pode. Está escrito na lei que o PM fez questão de imprimir para a esgrimir ao país, como se fossemos todos ingénuos e a simples visão de um papel sublinhado bastasse para ficarmos convencidos.

Sem mais argumentos e escudado numa lei que, convenhamos, lhe dá um jeitão numa altura em que precisa do PCP para aprovar o Orçamento do Estado, o PM foi dizendo: está na lei, está na lei. E como os senhores sabem, não podemos ir contra a lei.

Não podemos? Claro que podemos. Tiago Duarte, constitucionalista, explicou isso muito bem quando disse de forma clara e incisiva que nada impede o Governo e os partidos de reverem a lei. No auge da pandemia e perante o flagelo das novas restrições impostas a todos os portugueses, faz sentido rever esta e outras leis.

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“A Constituição é diferente da Lei. Uma lei pode ser alterada de um dia para o outro.”

É importante perceber que a Constituição não proíbe a suspensão de atividades políticas durante um estado de emergência. A lei sim, mas a Constituição não.

Ora,se é constitucional suspender um congresso partidário, então a lei de 1986 até pode ser considerada inconstitucional, como esclareceu Tiago Duarte. Isto, por estabelecer uma limitação acrescida àquilo que a própria Constituição determina.

Nesta lógica, o congresso do PCP pode realizar-se? Pela lei sim, pela Constituição pode, obviamente, ser suspenso. E ditam as regras do bom senso, tantas vezes mais fiáveis do que certas leis, que o congresso deve ser adiado para uma data mais oportuna.

Custa entender que Jerónimo de Sousa não perceba a urgência da suspensão e adiamento. Mais, é incompreensível que não seja sensível a uma causa que é de todos, dele e nossa. Os motivos de preocupação estão à vista, são cristalinos e transparentes para todos menos para o inefável aparelho partidário do PCP. Loures é um concelho de elevado risco e reunir ali 600 delegados vindos do país inteiro é dar um péssimo exemplo.

Vivemos de sinais e manter o congresso é dar um sinal contrário aos portugueses. As restrições, afinal, não são para cumprir.

Nem tudo o que pode ser feito, dever fazer-se, insisto. E se o PCP é pelo povo, então tem que mostrar que está do mesmo lado do povo, em plano de igualdade, a sentir o que sente o povo quando se vê completamente condicionado nas suas liberdades.

Ouvi Jerónimo de Sousa justificar-se na rádio, usando uma terminologia surreal e, porventura, incompreensível para o seu querido povo. Diz que não podemos colocar a questão das liberdades dos cidadãos num “plano dilemático”.

Num plano quê? Perguntou uma velhinha ao meu lado e perguntarão certamente muitos pobres cidadãos cumpridores, que sentem que lhes estão a querer encher os ouvidos de areia. Não sei com que intelectuais anda Jerónimo de Sousa a falar, mas posso garantir que o “plano dilemático” a que se refere não é compreensível para o querido povo que tanto estima.

Cá para mim, o “plano dilemático” começa e acaba no próprio Comité Central do partido, quando decide encriptar a informação para que poucos consigam descodificar uma decisão que embaraça os portugueses em geral e os militantes do PCP em particular.

O povo percebe de muitos planos: plano de igualdade, plano humanitário, plano de resgate e até plano de contingência, mas até ao presente desconhecia a batota do “plano dilemático”.

Já agora, o povo não só está a ficar farto da terminologia enganadora, como está pelos cabelos com as medidas discricionárias deste Governo e de quem o apoia. O povo detesta sentir-se enganado e começa a reagir a outros planos que conhece demasiado bem: os planos furados.

Muito mais do que perder tempo a tentar interpretar o sentido e a suposta elevação contidos no “plano dilemático”, importa aos portugueses aplacar os planos furados deste Governo. Falo das medidas que multiplicam os ajuntamentos, que promovem as multidões, que geram verdadeiros aglomerados de pessoas durante as manhãs de sábados e domingos, mas depois impõem o confinamento durante as tardes e noites.

Assim como poucos se solidarizam com a obstinação político-partidária de Jerónimo de Sousa e da sua clique, também há cada vez menos cidadãos a conseguir sintonizar com a eficácia de planos a dois tempos. Durante as manhãs, as pessoas são estimuladas a sair à rua e a fazer tudo em multidão, seja ir ao supermercado, andar nos transportes públicos, ir à praia, passear nos jardins, derramar-se nos relvados da cidade ou demorar-se nas esplanadas. Até às 13 horas em ponto, o vírus é livre para circular e contagiar. A partir dessa hora, tudo fechado em casa até à madrugada do dia seguinte.

Faz algum sentido, deixar que as praias se encham de manhã como se fosse agosto, que os jardins fiquem apinhados de gente, que as esplanadas e cafés fiquem a abarrotar de clientes, que nos supermercados todos se atropelem e que o distanciamento social nas lojas, ruas e espaços públicos seja uma miragem? Não faz sentido absolutamente nenhum, até porque tanto quanto julgamos saber, o vírus não dorme até à uma da tarde.

Se tudo isto não é um plano furado, não sei então o que seja. Vejo o que todos vemos: sinais contrários, mensagens contraditórias, vários pesos e várias medidas, regras discricionárias, critérios esdrúxulos, confusão generalizada e, claro, as pessoas todas em cima umas das outras, com e sem máscara, durante metade do dia. Como se tudo isto fosse pouco, ainda temos que ouvir a terminologia pretensiosa de quem tenta tapar o sol com a peneira.

Enquanto não houver medidas sensatas e, sempre que possível, cientificamente enquadradas ou justificadas; enquanto os critérios não forem coerentes, universais e compreensíveis; enquanto as mensagens não forem comunicadas com clareza; enquanto a curva dos acontecimentos e as conquistas da Ciência não forem explicadas por palavras simples, não vamos conseguir que haja consenso no acatamento e cumprimento de tudo o que nos é exigido.

O povo é manso e ordeiro, mas não é parvo. Há cada vez mais gente na rua aos sábados e domingos de tarde, há cada vez mais pessoas que se estão nas tintas para o distanciamento social e há cada vez mais homens e mulheres, rapazes e raparigas que optam por não usar máscara no espaço público. Acham que enquanto o exemplo não vier de quem deve vir, as regras não são para cumprir.

Situações delicadas exigem delicadeza no tratamento. Tudo isto remete para o Homem-Aranha e o seu grande lema: with great power comes great responsibility.

Será que alguém poderia emprestar rapidamente um ou dois livrinhos do Spider-Man a Jerónimo de Sousa e a António Costa?