Em África, onde o mais comum são os presidentes vitalícios, nada bate este acontecimento. José Eduardo dos Santos, presidente de Angola desde 1979 e que, de acordo com a Constituição, pode permanecer no poder até 2022, anunciou de surpresa que deixaria “a vida política ativa” em 2018. Não deu nenhuma pista sobre a possibilidade de continuar como chefe do MPLA nas eleições de 2017; nem nomeou um sucessor.

O descontentamento público causado pela crise económica em Angola e o facto de ter dado uma data para a sua saída sugerem que o presidente pode estar a falar a sério. Mas, aos 73 anos, José Eduardo dos Santos continua a ser muito resiliente. O seu círculo mais próximo tem vindo a reunir interesses globais cuja garantia principal é o controlo sobre a terceira maior economia de África. Eles não sairão de cena sem dar luta.

A ascensão de José Eduardo dos Santos seguiu o já conhecido caminho daqueles que são subestimados. Tomado como um apparatchik mediano e calmo do MPLA, José Eduardo dos Santos foi escolhido por ser considerado uma opção segura após a morte prematura do primeiro presidente de Angola. Passaram-se anos até os “barões do partido” se aperceberem de que José Eduardo dos Santos tinha tornado a empresa nacional de petróleo, Sonangol, numa espécie de propriedade privada e que tinha também tomado o controlo dos meios de coação, acumulando um considerável poder discricionário.

A viragem para o capitalismo nos anos 1990 e a derrota da UNITA em 2002 deram origem a uma presidência imperial, que contornou as instituições formais e não teve qualquer desafio interno. Aqueles que se encontravam mais perto do Estado-sombra do presidente, incluindo a sua família, acumularam grandes fortunas. Enquanto isso acontecia, José Eduardo dos Santos adoptava um estilo elíptico e raramente falava aos media. Analisar as opções tomadas à procura de um padrão mais abrangente é o equivalente angolano da Kremlinologia.

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José Eduardo dos Santos é uma personalidade complexa e não totalmente desprovida de mérito. A sua administração na área do petróleo foi relativamente eficiente para um contexto africano e Angola encontrou paz e até um certo nível de união desde 2002. Nas palavras de Leonardo Sciascia, ele é o género de político com apetência para fazer com que “todas as inovações sejam capazes de servir antigos propósitos”, usando assim o marxismo-leninismo, o capitalismo corrupto, a guerra e a paz como meios para perpetuar o seu poder.

Mas o resultado dos seus governos é decepcionante e irá continuar a definir Angola muito depois da sua saída do poder. José Eduardo dos Santos criou uma economia política desequilibrada, onde os benefícios das fortunas feitas através do petróleo ficaram concentrados numa classe urbana privilegiada, em especial num pequeno círculo de oligarcas. Apresentados como empresários competentes, vivem na sua maioria de rendas e do apoio estatal e fizeram investimentos em todo o mundo, excepto em Angola. A reconstrução implicou um grande investimento público que é, porém, mais visível nos arranha-ceus de Luanda e em elefantes brancos carissimos. Apesar das ambicoes de diversificação económica e da despesa de milhares de milhões de dolares em estrategias de “desenvolvimento”, Angola continua inteiramente dependente do petróleo.

Quando os preços do petróleo desceram drasticamente em 2014, causando uma descida de 60% das receitas do estado, este edifício foi abanado até ao seu âmago. O aumento da contestação fez com que o regime reagisse de forma violenta; apesar de um aumento do recurso a empréstimos para cobrir despesas, muitos salários da função pública deixaram de ser pagos; houve uma inflação nos preços de produtos alimentares e nos transportes, afetando assim todos os cidadãos angolanos.

Algumas das medidas tomadas para enfrentar esta crise foram positivas. O governo parece estar a apostar mais seriamente na diversificação e José Eduardo dos Santos, que criou os atuais oligarcas, exige agora que eles se empenhem no investimento produtivo. Mas estas medidas não resolvem o problema da grande dependência de petróleo nem a crise imediata.

É natural que os angolanos, já habituados às reviravoltas do Presidente, encarem com cepticismo o anúncio de José Eduardo dos Santos. Alguns defendem que o Presidente não tem nenhuma intenção de abandonar o poder. Esta não foi a primeira vez que José Eduardo dos Santos anunciou que se queria reformar: talvez esta seja uma estratégia para se candidatar novamente nas eleições de 2017, voltando atrás mais tarde na sua promessa.

Outros, no entanto, acreditam que ele irá realmente deixar o poder e concentram-se assim na escolha do seu sucessor. Será José Filomeno, filho mais velho de José Eduardo dos Santos e responsável pelo Fundo Soberano de Angola, ou será um dirigente como Bonito de Sousa, João Lourenço ou António Pitra? Certamente que não poderá já ser Manuel Vicente, actual vice-presidente de Angola e antigo presidente do conselho de administração da Sonangol, que está ser alvo de novas suspeitas de corrupção em Portugal? Ou talvez José Eduardo dos Santos não tenha um plano de longo prazo e esteja apenas a tentar controlar os danos da crise, ao ver a economia a desmoronar. Por agora, não sabemos que caminho é que José Eduardo dos Santos pretende seguir, se é que esse caminho existe.

Sabemos no entanto qual é o problema que ocupa a maior parte do seu tempo e qualquer estratégia de sucessão tem de fornecer uma resposta para ele. Esse problema é algo de bastante mais específico do que a manutenção da ordem política ou da estabilidade económica: José Eduardo dos Santos quer garantir a continuidade do sistema que estabeleceu e proteção para si e para a sua família. A sua saída do poder é um fator de risco para toda a gente que o rodeia. Os riscos não surgirão da oposição parlamentar, que é débil, mas sim do interior do sistema do MPLA. Até mesmo um delfim supostamente leal se poderia sentir tentado a fazer algo contra os interesses da família e culpar o seu antecessor pelos enormes problemas do país. A morte atroz de Muammar Khaddafi, os problemas judiciais do ex-primeiro-ministro José Sócrates e do ex-presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva: estas experiências de grande vulnerabilidade de quem pouco tempo antes era todo-poderoso explicam a relutância de José Eduardo dos Santos em abandonar o poder.

Por esta razão, a crise do petróleo é um pretexto para que se façam mudanças que sustentem o status quo em Angola a longo prazo. Isabel dos Santos, que é filha do Presidente e também a pessoa mais rica de Angola, irá ter lugar no comité que tem como objetivo privatizar os bens da Sonangol: é provável que ela fique com os pedaços mais apetecíveis da empresa. Isabel dos Santos foi ainda nomeada para um comité que irá supervisionar a reforma urbana da cidade de Luanda. Estas opções estratégicas no que diz respeito à economia política e ao fortalecimento dos interesses dos que lhe são mais próximos são tão importantes como a vistosa dinâmica da sucessão e podemos contar com muitas jogadas criativas para aumentar este controlo familiar no próximo ano.

O que não será necessariamente mau, desde que isso garanta uma retirada ordeira do poder.

Seja como for, as notícias sobre a reforma de José Eduardo dos Santos são manifestamente exageradas.

Ricardo Soares de Oliveira ensina política na universidade de Oxford e é o autor do livro “Magnífica e Miserável: Angola desde a guerra civil” (2015). Este artigo foi originalmente publicado no blog “Beyond Bricks”, do Financial Times. A tradução é do Observador.