Passou quase uma semana do discurso da União de Jean-Claude Juncker. Ouvidos todos os comentários, avaliadas todas as opiniões, tratou-se de um discurso ambicioso mas realista.

Acrescento eu: este 3º discurso de Juncker sobre o estado da União foi talvez o seu melhor desde que é Presidente da Comissão Europeia. Em Portugal, a crer nos comentários ouvidos, é como se ele se resumisse quase só a dois pontos: a proposta de criação de um Ministro europeu para a Economia e Finanças e a fusão dos cargos de Presidente da Comissão e do Conselho Europeu, permitindo à Europa apresentar-se com um único rosto perante o Mundo.

Por outro lado, o lapso – a “gaffe” –, de referir a Europa como indo “de Vigo a Varna”, foi amplamente criticado, como se contivesse uma espécie de plano negro de exclusão do nosso país da integração europeia ou, na melhor das hipóteses, a subalternização de Portugal face a Espanha. E assim se fez de um simples erro ou distracção, um “fait-divers” sem importância, um caso de lesa-país, ignorando a essência do discurso e o que verdadeiramente importa.

Permitam-me que resuma, de forma telegráfica, o discurso; se tiverem paciência para ler até ao fim, conhecerão um aspecto que passou despercebido e que é, na minha opinião, muito relevante para o nosso futuro colectivo. Propôs Juncker, além dos dois pontos acima referidos:

  • O estado da União é positivo e recomenda-se, mas por o ser é agora que deve começar a preparar o futuro. Marcadamente pessoal, o 6º cenário traçado por Juncker para além dos cinco que a Comissão apresentou em Março, implica melhor e não mais integração (ao contrário do que diz o artigo do Financial Times, aliás excelente, que os leitores podem consultar aqui): novas agências e instituições, mais democracia, mas também, é crucial, “devolver competências aos Estados-membros sempre que isso fizer sentido”.
  • Uma nova estratégia industrial; um mercado interno aperfeiçoado; uma Autoridade Comum do Trabalho para assegurar a mobilidade laboral e justiça no acesso ao mercado de trabalho europeu; uma Agência europeia da cibersegurança; um Fundo Monetário europeu; votação por maioria, e não por unanimidade, em matérias como o imposto sobre as empresas, as transacções financeiras e até a política externa; uma fiscalidade mais justa e “europeia” para a indústria digital; uma nova Agência para o Asilo. Juncker defendeu que a Europa continue a ser um farol da luta contra o aquecimento global. E recordou que a União recebeu 720 mil refugiados em 2016, mais do que EUA, Canadá e Austrália juntos, devendo reforçar a sua vocação de terra de asilo. Mas, para isso, todos devem colaborar no esforço de acolhimento.
  • E porque a Europa é muito mais do que um mercado único e uma moeda, tem de defender os seus valores a todo o custo, em primeira instância o Estado de Direito (“rule of law”); referiu-se assim aos problemas internos na Polónia e Hungria e, no plano externo, à Turquia, cuja adesão nos termos actuais deve ser, considerou, “descartada”.

Foi um discurso ambicioso: a Europa não pode ficar quieta, as velas estão enfunadas e tem de navegar. Um discurso realista, a reconhecer o muito que há a fazer; propôs mais de vinte medidas concretas (ver carta de intenções), em prazos claros — fim de 2018, 2020, 2025 – afirmando que este é o momento certo e também, provavelmente, a última oportunidade para a integração europeia.

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Mas o ponto que deixei para o fim encerra uma lição importante, nomeadamente para Portugal. É a ideia de que “A Europa deve defender sempre os seus interesses estratégicos”, propondo novo quadro de análise do investimento direto estrangeiro na Europa. Trata-se de proteger o mercado interno europeu da concorrência desleal; do dumping; da entrada de capital de países terceiros em domínios próprios da soberania dos Estados-membros, da ordem pública e segurança europeias. Trata-se, no fundo, de garantir que a União Europeia e os seus membros salvaguardam os seus centros de decisão – europeus e nacionais. “Deve haver reciprocidade”, disse Juncker, pois embora o mercado europeu seja um mercado aberto, “temos de receber o que damos”. E acrescentou: “Não somos adeptos ingénuos do comércio livre”. Deve por isso haver transparência, escrutínio e debate sempre que uma companhia estrangeira quiser adquirir sectores estratégicos para a segurança europeia.

Ainda que aparentemente focada sobretudo na segurança, esta preocupação do Presidente da Comissão Europeia ecoa a de quem acredita na liberdade, na livre-troca de produtos, pessoas, capitais e ideias, contra o abuso por parte de terceiros. Dumping social, ambiental, económico, assunção de interesses alheios em detrimento dos próprios, devem ser travados. Defender os próprios interesses é legítimo – e normal – e não significa proteccionismo.

Isto recorda-me a discussão sobre os centros de decisão nacional. Em 2002, o manifesto dos 40 defendeu a manutenção em mãos nacionais dos activos estratégicos. O Mundo mudou e as intenções dos 40 são hoje obsoletas. A descapitalização do Estado, das empresas públicas e grupos privados, acelerada pela crise económica, inviabilizou-o; a generalidade dos grupos e empresas portuguesas de relevo está hoje nas mãos de capital estrangeiro.

A oposição entre os centros de decisão e os centros de competência diluiu-se e o país apenas pode aspirar a manter os segundos. Consegui-lo-á, com a maior parte dos activos, empresas e grupos empresariais, em mãos estrangeiras? A resposta é simples: não há alternativa, é isso ou a irrelevância. Implica valorizar os recursos humanos mais empreendedores, fixando-os em Portugal, e desenvolver uma cultura empresarial e de iniciativa. Significa potenciar as nossas próprias capacidades para podermos “receber o que damos”.

Essa é a grande lição a extrair do discurso do estado da União proferido por Jean-Claude Juncker, naquele que ficará, estou convencido, como o seu principal contributo programático para o futuro da União Europeia. E dos seus Estados-membros. Como Portugal.