Passaram-se três anos desde que foi introduzida na legislação portuguesa a chamada «lei do piropo». Na prática, consistiu numa alteração ao artigo 170.º do Código Penal, referente à importunação sexual – antes incluia apenas actos exibicionistas e contacto físico não desejado, e passou a integrar também «propostas de teor sexual». Ora, passados esses três anos da sua aprovação (em 2015, ainda durante a maioria PSD-CDS) e introdução na legislação, qual é o balanço possível? É zero – zero condenações pelo crime de importunação sexual desde 2015.

De acordo com os dados do Ministério Público, foram instaurados 2262 inquéritos pela eventual prática do crime de importunação sexual, entre 2015 e 2017. E com valores crescentes de ano para ano, tendo 2017 visto a instauração de 870, cerca de 15 inquéritos por semana. Só que, destes, apenas 10% resultou em acusação: houve somente 232 acusações por este crime nestes três anos. Dir-me-ão que estes números têm limitações – e sim, têm. Podem estar actualmente em curso processos-crime que resultem finalmente em condenações por importunação sexual. Tal como a recolha e tratamento dos dados estatísticos podem não ser perfeitos, por exemplo devido aos casos com múltiplas acusações e crimes associados. Mas, mesmo assim, são os números que existem e que permitem uma primeira avaliação. E zero condenações em três anos é uma marca demasiado redonda para não servir de alerta.

O que explica este fracasso? É fácil apontar o dedo à Justiça, mas talvez valesse a pena olhar antes para o parlamento. É que leis mal feitas não podem dar bons resultados e, neste caso, as imperfeições do articulado da lei são gritantes. Repare-se que, por exemplo, na questão do piropo, o artigo em causa pune a existência de uma «proposta de teor sexual», mas não pune a existência de comentários, piadas ou gestos com conotação sexual. Traduzido: na letra da lei, é crime um homem perguntar a uma mulher ‘queres que eu te parta toda?’, porque há aí uma proposta, mas já não é crime se, em vez de uma interrogação, o indivíduo optar por uma afirmação: ‘partia-te toda’ pode ser tido como legal por não corresponder a uma proposta, como explicou o advogado André Lamas Leite. Ou seja, a ausência de uma definição exacta do que distingue uma proposta de teor sexual e um comentário rude foi fatal para a eficácia da lei.

Este caso serve de exemplo para um problema maior: as leis mal feitas que saem do parlamento. Não são uma raridade, surgem de todas as bancadas parlamentares e, descartando a incompetência, explicam-se por diversos motivos de ordem política. O primeiro desses motivos reside na inclinação demagógica com que os partidos políticos legislam sobre determinadas matérias, mais preocupados em obter reconhecimento público pelas suas tomadas de posição do que em, efectivamente, resolver os problemas em relação aos quais legislam. Ou seja, caem com frequência na tentação de legislar com os olhos postos na agenda mediática. Uma das manifestações mais recorrentes desta atitude está nas «reformas» pós-crises políticas (que nunca mudam nada de estrutural) ou, noutro tipo de exemplo, na lista de organismos públicos fantasma – isto é, que foram anunciados com pompa como solução para qualquer crise momentânea e que, depois, ficam no papel.

Outro motivo de ordem política para má produção legislativa tem a ver com a dependência de acordos entre partidos para a sua aprovação parlamentar, algo que, por vezes, transforma os projectos de lei numa manta de retalhos incoerente e ineficaz. Não é preciso recuar muito no tempo para ver exemplos disso mesmo. Ainda há dias, Marcelo Rebelo de Sousa assinalou a sua preocupaçãocom a forma «atabalhoada» como o parlamento tem produzido legislação sobre matérias complexas, tais como a descentralização e o alojamento local. O seu diagnóstico é certeiro: a necessidade de gerir a tensão entre partidos e satisfazer todas as partes tem prejudicado a qualidade das leis produzidas pelos deputados, que sacrificam o conteúdo dos projectos de lei em nome dos seus interesses políticos.

O problema da falta de qualidade na produção legislativa não é novo. Mas a geringonça agravou-o – um dos malefícios (menos discutidos) da geringonça foi precisamente este. Porque o PS depende de BE-PCP para se manter no governo, porque os socialistas dependem do PSD para aprovar diplomas-chave nas áreas europeias e laborais, e porque BE-PCP dependem do protagonismo mediático das suas agendas para se diferenciarem do PS e mostrarem serviço ao seu eleitorado, a qualidade da produção legislativa tem sido muito sacrificada em nome da gestão dessas dependências. E, a um ano de eleições legislativas, a situação tem tudo para piorar.

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